Estou
contando, romanticamente, a história de
um homem e uma mulher que vão se encontrando. Não percam os dois capítulos
anteriores para ficar por dentro.
Capítulo 3.
Enquanto ele vivia sua vida familiar,
social e profissional, numa grande cidade paulista, ela ia se movimentando na
capital mineira. Estuda, estuda, procura emprego, trabalha em banco, vai ao
cinema – adora cinema, tanto que mora perto do antigo Cine Candelária, uma
grande, ampla e moderna sala de exibição (foi lá que ambos viram Catherine
Deneuve no início da carreira em Os Guarda Chuvas do Amor, e o arrasa
quarteirões Doutor Jivago ) e, como era
de se esperar de uma jovem, namora. E acaba se casando em 1984, na igreja do
colégio Santo Antônio.
SJRP já está pequena,
profissionalmente, para ele. Decide se candidatar à vaga de psicólogo em Betim
(e ela ainda não se mudara para esta cidade, onde viveria por anos). Veio, fez
os testes e antes de pegar o ônibus para voltar, resolve ir à Igreja de Santo
Antônio. Rezar? Não. Tornara-se ateu, mas se lembrava bem dos conflitos
religiosos que vivera depois de sair do seminário e de que fora ali, na Igreja
do colégio, onde se
extasiava com os diferentes tons de verde do imenso painel de São Francisco,
que lhe lembrava vagamente dos traços de Portinari, que comungara pela última vez. Engraçado. As pessoas
se lembram da Primeira Comunhão. Ele se lembra da Última Comunhão. Sorriu. Ele
era diferente. Muito diferente. A igreja estava enchendo de gente. Só então
reparou que ia haver um casamento. Tentou levantar-se para ir embora, mas algo
o retinha no banco. Deixou-se ficar. Banco por banco, preferia o da Igreja ao
da rodoviária. Viu o noivo. Alto, magro, barbudo. O órgão emitia músicas –
nunca fora dado a músicas. Havia uma movimentação de gentes desconhecidas.
Zum-zum crescendo. Era a noiva chegando. Saindo daquele estilo espalhafatoso de
vestido longo e sapatos altos, ela vinha com uma sandália – rasteirinha, como
se diz hoje -, um vestido branco curto e na cabeça um arranjo de flores que
caiam sobre seu rosto e que a tornava mais linda ainda. (Saberia mais tarde
que, sendo muito prendada, fora ela mesma que arrumara o vestido, os arranjos e
tudo mais. Mãos de fada, falaria para ela depois. Você tem mãos de fada). Havia
um quê de conhecido naquele rosto claro, fino, naquela moça magra que deslizava
pelo corredor. Podia jurar que a tinha visto antes. Mas onde? Era nova, bonita
e sorridente. Os cabelos longos, lisos e claros caiam sobre seus ombros. Ao
passar perto dele, fitou-o nos olhos. Ela parou. Como se o reconhecesse também.
A cabeça dele latejava. A memória lhe diz algo que não queria acreditar. Ambos
piscaram. Nervosos. O homem que lhe segurava o braço puxou-a. Ela vira
lentamente a cabeça e se dirige ao altar. Ele foge. Sai da igreja. A rua
apinhada de carros e de gente voltando do trabalho. Lembrou-se. Primeiro, da
rodoviária, quando saia de Belo Horizonte. Depois, de Patos de Minas. Não, não
era possível. E se fosse? Ficara contente com a felicidade que ela estampava no rosto. O marido seria um futuro coronel da Polícia Militar. Tentou afastar a lembrança, só o conseguindo quando
se refugiou no quentinho do ônibus em direção ao Oeste paulista e refez
mentalmente o texto que escrevera para comemorar o dia Internacional da Mulher,
a ser publicado no jornal Dia e Noite, onde trabalhava como cronista, seu trabalho de despedida.:
AS MULHERES DE QUE OUVI FALAR...
De Eva, em contraposição a
Lilith, das mulheres na pré história que morreram dando a luz os hominídeos que
se transformavam, não tão rapidamente, em homens, nas deusas que suscitaram
medo e pavor nos homens primitivos, nas grandes mulheres bíblicas, ou nas
prostitutas, considerada a mais antiga de todas as profissões, nas mulheres
oprimidas pelos homens, com o temor de sua influência, na virgem que deu a luz
a um deus, mito presente em muitas religiões, nas feiticeiras assassinadas ou
pelos homens ou pela instituição Igreja Católica, nas musas que povoaram a
mente e corações dos poetas, das que serviram de imagens para Madonna, Pietà,
Monalisa, nas atrizes que povoaram nossos sonhos de adolescentes, nas mulheres
africanas que, ao nascerem gêmeos, matam um deles, em nome da sobrevivência do
grupo, das mulheres mutiladas genitalmente na África ou mutiladas pelo aborto
não consentido e ilegal, ou mortas quando querem exercer o direito de ter ou
não ter filho,das sufragistas, da primeira mulher com cargo político, da profissional
liberal em cargos antes ocupados só por homens, as mulheres pedagogas que
passaram o conhecimento pelas gerações, Florence Nightingale, a primeira
enfermeira que cuidou dos feridos na guerra do século passado, das mulheres
escritoras, das cantoras, das mulheres que rodam bolsinha no alto da Afonso
Pena em Belo Horizonte com concorrência direta e feroz dos travestis ou garotos
de programa, das mulheres assassinadas pelos namorados, ex-maridos, numa
autêntica caça às mulheres, das mães que se debruçam sobre os filhos
assassinados por motivos religiosos, políticos, econômicos ou pela estupidez da
patologia de outros homens e ou mulheres, das mulheres que cuidam dos homens,
das mulheres de corpos siliconizados, das que morrem em lipoaspiração, das que
passam fome ou por falta de alimentos ou por se considerarem gordas e sobretudo
daquela que passa ao meu lado na rua, que toma o ônibus, que faz compra no
supermercado, que enfrenta a fila no banco, a mulher do dia a dia, a mulher
comum, a mulher ser humano que anda tão esquecida.
.
Ficou morando em Belo Horizonte sem a
família durante anos. A esposa, funcionária de banco, não conseguia
transferência, o que só iria ocorrer em... ah, no ano que nascia a filha dela
Tão esperada, tão desejada. É conhecido que filhos podem servir de um
subterfúgio para o distanciamento dos casais. E mesmo o menino, muito parecido com o pai,
nascido pouco tempo depois e com nome quase igual ao da irmã, não segurou o
casamento. E foi o que aconteceu. Mesmo casando depois, foi ela que se separou
primeiro, e, que se frise, no mesmo ano que ele se aposentava da empresa. Era o
ano 2000, na comemoração dos 500 anos de descobrimento do Brasil.
- Descobrimento, não – dizia ela,
geógrafa , então trabalhando no Estado e Prefeitura e vendendo artesanato que
ela mesma produzia..
Mas isso ele ia só ouvir mais tarde.
Com aposentadoria, a vida mudou. Foi
tempo de não fazer nada, viajar, ler, escrever e separar-se. E sair de casa.
Mudar de apartamento, de bairro e de vida. E uma namorada, colega de profissão
e luterana, que não durou muito. Seria por causa da religião ou da profissão? Mas
gostou de freqüentar a Igreja Luterana.
Fim. Do capítulo. Prepare-se para o
Capítulo Final, em breve.
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