um autor que gosto muito e de quem tenho três
livros na minha estante.
Com mais de 45 anos de carreira, o psiquiatra e psicoterapeuta Flávio Gikovate, de São Paulo (SP), já atendeu mais de 9.000 pacientes. Esse número, segundo ele, se estende a 20.000, se forem contabilizados os ouvintes que têm suas dúvidas respondidas no programa "No Divã do Gikovate", que vai ao ar aos domingos, às 21h, na rádio CBN.
Em entrevista ao UOL Comportamento, o psiquiatra esmiúça os mecanismos do medo, que paralisa as conquistas, e fala como é possível modificar o modo de agir.
UOL: Você costuma dizer que todo mundo tem medo da felicidade. Por que uma estimativa tão alta?
Flávio Gikovate: Porque esse medo tem relação com o que nos aconteceu no ato de nascer, pelo qual todos passamos: estávamos em harmonia no útero, uma espécie de "paraíso", e dali fomos expulsos na hora do parto. Assim, nascer é uma transição para pior, pois passamos a estar expostos a dores, sensações de desamparo. Parece que se forma um tipo de condicionamento: sempre que estamos próximos de um estado de harmonia e felicidade, tememos o risco de uma nova ruptura, agora a da morte ou da perda de pessoas amadas.
Parece que o risco de tragédia aumenta quando estamos próximos da felicidade, o que não é fato, mas é como sentimos. Aliás, todo pensamento supersticioso tem a ver com isso: quando estamos bem, batemos na madeira para afastar os maus fluidos. Assim, o medo da felicidade é, de fato, o medo de perder a felicidade e o que temos de melhor, como se esse risco aumentasse à medida que nos aproximamos da harmonia.
UOL: O medo tem a ver com o receio da mudança e a dificuldade em abandonar hábitos antigos? Isso significa que somos comodistas por natureza?
Gikovate: Podemos ter medo de mudanças, mas isso não está relacionado apenas com o medo da felicidade. Abandonar hábitos antigos quase sempre implica a perda de um padrão de comportamento que também nos traz algum alívio para a ansiedade ou depressão.
Mesmo os mais inesperados, como automutilação, parecem ter a ver com a redução da ansiedade. Quem rói as unhas, por exemplo, sabe muito bem que esse ato funciona como ansiolítico. Não somos comodistas por natureza, mas temos medo do sofrimento e nos afastamos dos hábitos, compulsões e vícios que tanto nos confortam quando as perdas passam a ser maiores do que os ganhos. Talvez sejamos "matemáticos" por natureza.
UOL: Podemos dizer que o medo provoca uma espécie de autossabotagem?
Gikovate: Sabotamos a nós mesmos quando chegamos perto de atingir nossos desejos. Um bom exemplo é o do emagrecimento: quando o regime alimentar é bem-sucedido e a pessoa está chegando à silhueta desejada, surge uma tendência forte para que ela relaxe e volte a comer demais, recuperando o peso perdido. A autossabotagem faz parte do medo do sucesso, que é uma das versões do mesmo medo da felicidade. Quando as coisas vão bem, sentimos medo em vez de gratidão.
UOL: Ao longo da vida ficamos mais medrosos? Ao alcançarmos objetivos, o medo se torna mais presente? Por exemplo: medo de morrer depois de ter filhos ou de voar de avião depois de agendar a viagem dos sonhos.
Gikovate: Não é que vamos ficando com mais medo. Ficamos mais próximos da felicidade que sonhamos e, aí, temos a sensação que ela atrai uma tragédia iminente. Temos a impressão de que o avião cai com mais facilidade quando vamos fazer a viagem dos sonhos do que quando estamos indo para um evento triste: um funeral, por exemplo. E isso não é verdadeiro. Porém, é como sentimos em função do reflexo condicionado que se estabeleceu a partir do "trauma do nascimento", expressão que é o título de um livro do psicanalista austríaco Otto Rank (1884-1939).
UOL: O medo também tem a ver com crenças limitadoras? Quais?
Gikovate: O medo é parte dos processos instintivos relacionados com a autopreservação, com os cuidados que devemos ter para nos defendermos de perigos reais. No passado, animais perigosos; no presente, ser atropelado, por exemplo. Acontece que, pela via dos reflexos condicionados e em decorrência de determinadas vivências traumáticas, desenvolvemos medos de situações que não são tão perigosas, como é o caso do avião. Chamamos isso de "fobias": medo daquilo que não deveria, em condições normais, nos assustar. Medo de leão é medo justo; medo de barata é fobia. Nosso psiquismo é extraordinário e nos ajuda em muitos aspectos, porém, pode nos perturbar.
UOL: O medo de errar é um dos piores medos?
Gikovate: Sim. É muito ruim porque acovarda a pessoa e a impede de experimentar o que é novo. O risco de erro está presente em todo experimento, mas ele corresponde ao mesmo caminho que nos leva a acertar, a avançar e progredir. Aprendemos com os erros e com os acertos. Quem não arrisca, fica estagnado. A boa tolerância a frustrações e contrariedades, a chamada boa resiliência, é condição fundamental para o crescimento pessoal, profissional, sentimental e moral de todos nós.
UOL: Falar que os outros colocam olho gordo nas nossas conquistas é uma maneira de, se as coisas derem errado, atribuir a culpa a terceiros?
Gikovate: É um processo de projeção: atribuímos a outra pessoa uma parte da nossa própria subjetividade. Temos, dentro de nós, forças construtivas e destrutivas. Essas últimas se ativam mais quando estamos muito felizes. É fato, também, que a felicidade pode incomodar a um bom número de pessoas que, por comparação, se sentirão por baixo, revoltadas com a hostilidade sutil típica da inveja. Porém, penso que os atos destrutivos que costumamos praticar são da nossa própria autoria e existiriam da mesma forma se não houvesse a inveja. E como ela coexiste com nossos bons momentos, podemos, facilmente, atribuir a ela um processo que nos pertence.
UOL: Para mudar hábitos e a si mesmo, o que é mais importante? Foco, disciplina ou não se abater pelas recaídas?
Gikovate: Tudo é importante e muito difícil. É preciso foco, disciplina e boa tolerância aos fracassos. Muitas pessoas não têm essa tolerância. Para elas, mudar é ainda mais difícil. É preciso se empenhar e conhecer o melhor possível a si mesmo, seus sentimentos e emoções, mesmo os nobres, e como funciona sua mente. Convém que saibamos quais os nossos pontos fracos e quais são nossos dons maiores.
Depois de tudo, saber muito bem o que se quer mudar, para onde mudar. Aí, se faz um plano, um projeto e, o mais importante: temos que tratar de executá-lo. As mudanças só acontecem quando abandonamos a teoria e partimos para a ação. Ninguém se cura do medo de avião em um consultório; nele se conversa sobre porque ele surgiu e como enfrentá-lo. Mas a pessoa terá que entrar no avião, sofrer os medos correspondentes e, aos poucos, ir se livrando desse tipo de condicionamento psíquico nocivo. Tudo tem que acontecer aos poucos, com firmeza e paciência, porque esses processos podem durar mais do que gostaríamos. É muito raro que uma pessoa consiga mudar de um dia para o outro.
UOL: Todo mundo é capaz de mudar?
Gikovate: Quase todo mundo. Existem algumas pessoas por demais intolerantes a sofrimento e dor que não conseguem nem se imaginar em situações em que terão de enfrentar adversidades. Essas não mudam.
UOL: Como criar filhos mais corajosos para a vida? O que os pais devem evitar para que as crianças não sejam ou se tornem medrosas?
Gikovate: A intensidade do medo é, segundo acredito, um atributo inato, variável de pessoa para pessoa. Os pais têm que ajudar as crianças a desenvolver a coragem, ou seja, a força racional necessária para que os medos irracionais sejam enfrentados. Isso se consegue em parte pelo exemplo e, em parte, estimulando as crianças a vivenciarem dificuldades, dores, adversidades inerentes à nossa condição.
Nada de superprotegê-las, pois isso as enfraquece. Todos têm de aprender a lidar com docilidade com as contrariedades e frustrações próprias da vida. Isso é mais fácil para os que já nascem mais condescendentes e mais difícil para os mais revoltados. Porém, todos têm de chegar lá, pois a vida não irá poupar uma pessoa apenas porque ela blasfema e grita quando contrariada.