Fazenda onde nasceu o blogueiro. Foto Luis Fernando Gomes

Fazenda onde nasceu o blogueiro. Foto Luis Fernando Gomes
Fazenda onde nasceu o blogueiro. Foto Luis Fernando Gomes

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Após a volta das férias, minhas e dos leitores, vou postar um texto meu, escrito há muito tempo, mas que andei atualizando. É uma homenagem a alguém de quem gosto e que foi muito importante na minha vida.

Fernando,meu tio.


Era um pouco mais velho do que eu, calculo, uns dez anos. (A gente nunca pergunta a idade do tio. Olha o respeito.) A lembrança mais antiga que guardo de minha infância é nos ombros dele, descendo da casa da minha avó para a minha casa. Era manhã de um frio inverno andrelandense. Igual a um cavalinho, lá íamos nós, trotando rua abaixo. Toc, toc, toc. Eu devia ter na época três anos e ele uns treze. Um ou outro passeio na fazenda de meu avô era acompanhado pelo Fernando, que ficava por lá me protegendo de algumas vacas meio bravas, espantando os porcos que não sofriam de peste suína, e me arrumava um leitinho quente, tirado na hora.
Quando eu estava no terceiro ano primário, no antigo Colégio São Boaventura, ele fazia o científico (para os mais novos, equivale ao curso médio). Uma vez fui à sala dele e fiquei espantado de ver tanta gente grande junta e surpresa ao ver um esqueleto e alguns órgãos na aula de anatomia. Eu era o menor aluno do colégio. Nas paradas de Sete de Setembro eu ficava lá atrás, batendo os pés, como se marchasse, e ele na frente. Não sei se na banda ou não, porque ninguém na família tocava qualquer instrumento. O máximo que alguém conseguiu em termos musicais era quando eu tocava a campainha na hora da missa. E diziam, desafinado.
Em casa, falavam-me: “Você é igual ao Fernando”. O que me enchia de orgulho. Afinal ele era inteligente, falava algumas coisas em inglês, ouvia música clássica e tinha uma namorada. Quem sabe no futuro eu também arrumaria uma namorada, falaria inglês e escutaria música clássica.
Lembro-me de que namorava a Julieta, lá no jardim, e às vezes eu estava por perto (seria para aprender a namorar? Me perguntou meu primeiro analista. Deixei-o sem resposta). Foi com ele que aprendi as primeiras palavras em inglês. Ia fazer onze anos, e eleven foi a primeira que aprendi.
Quando foi fazer o Tiro de Guerra em Itajubá, ficava imaginando por que alguém tinha de sair de casa e ir para um lugar tão distante, do qual a gente pouco ouvia falar. Voltava de vez em quando de cabeça raspada e de uniforme verde-oliva. Uma beleza. Olha lá- falava eu para os amiguinhos-, o meu tio é cabo.
-Cabo de vassoura?- perguntavam os invejosos.
Ia bravo em cima dos meninos e acabava apanhando. Chegava em casa com os inevitáveis óculos quebrados.
Era o crânio da família. Sabia de tudo; era quase uma enciclopédia ambulante. Qualquer coisa que lhe fosse perguntado, lá vinha a resposta na ponta da língua. Nas minhas férias de seminário, o primeiro a quem visitava era ele. Contava os grilos que ocorriam naquele santo educandário, comentava sobre as minhas crises de fé , foi ele quem escreveu meu primeiro discurso no Grêmio Acadêmico, saudando o Cardeal Mota e ainda por cima acabava ouvindo alguns discos de música clássica ou mesmo os tangos, muito antes de Brando e Schneider assustarem os cinéfilos com o Último Tango em Paris.
Na época da revista Realidade, enquanto visitava o seu escritório de contabilidade, o assunto era o Vietnã, as eleições presidenciais americanas, o movimento hippie, a crise na Igreja e outros babados nacionais e internacionais.
Até que surgiu no horizonte a freira Ângela. Seminarista maior e muito dedicado, enquanto não saía para o mundo, todos ficavam satisfeitos com a religiosidade que apresentava nos cultos e cerimônias litúrgicas. Daí ser o seminarista mais convidado para ajudar nas missas em colégios de freiras e de meninas donzelas. Gostava de ir também por causa do café da manhã depois da missa, que era muito reforçado: laranjada, dois ovos quentinhos, que a gente tomava de um gole só, lambendo e estalando os beiços de  contentamento ( havia um boato de que um bispo tomava uma dúzia de ovos de manhã), pão sem bromato (é bom que se diga, se bem que padeiros honestos juram de pés juntos que nunca usaram bromato)), manteiga mesmo ( nada de margarina ensebada), café sem aditivo e leite com 3 % ou mais de gordura – nada de leite desnatado. Ah, a gente saía com a barriga satisfeita( ia dizer “cheia”, mas comadre Anita me disse que não se pode falar “cheia”; é satisfeita) e com a consciência do dever cumprido. Até que um dia, ao ajudar na comunhão das freiras, caí duro. Ou quase. Uma linda freirinha da minha idade, toda sorrisos. Ah, mandei a batina para as Cucuias e saí atrás da freira. Era esse mais ou menos o script de meu segundo romance (o primeiro é abominável; não ouso nem dizer o nome). Mostrei-o para Fernando. Havia conotações psicológicas, cenas pesadas, etc. Era para ele apreciar e prefaciar.
-Nossa, está pesado demais- falou Fernando, meu tio.- Não dá para prefaciar.
É por isso que não ganhei o Nobel de Literatura antes do Saramago. Era muito pesado, mesmo na época do Último Tango em Paris. Culpa também do meu tio.

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