Fazenda onde nasceu o blogueiro. Foto Luis Fernando Gomes

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sábado, 1 de março de 2014

Conto: Jotagê e eu.

Algns leitores de meu novo livro, Contos, Encontros & Reencontros, pediram que postasse um dos contos para os leitores de 57 países que acessam o blog. Resolvi atender em parte. Colocar um conto  para os novos leitores lerem, mas de meu prmeiro livro, já esgotado (encontrado só em sebos). E no início do carnaval, algo bem leve para os foliões e não foliões.

JORGE GERALDO, EU E MEU LANCHE – Um conto.

Mas que menino chato e atemorizador era aquele Jorge Geraldo da minha tranqüila e sossegada infância turvelense. Isto era nome? Jorge Geraldo!! Nome duplo. Confesso que o meu também era duplo. Mas era mais bonito, mais sonoro. Ou seria a raiva reprimida? Apesar da mesma idade, ele era mais forte, sacudido e troncudo.  Parecia ter dez, e não oito como tínhamos, e, além do mais não usava óculos, como eu. E eu pelava de medo dele. E não era para menos. Jorge brigava com todo mundo na escola. Diziam até que já batera em meninos mais velhos. Até dona Lili a intransigente professora do ensino básico (naquela época era primário), abafava seus gritos quando o Jotagê estava por perto. Jotagê. Ele começou a exigir que as pessoas o chamassem assim. De modo que ele pintava o sete e aprontava com todo mundo.
Eu até que não teria muito problema com ele, desde que ficasse só no medo, e não acontecesse algo de estranho numa fria e cinzenta manhã em que ele roubou minha merenda. Foi na hora do recreio, quando todo mundo saía esfomeado da sala de aula e ia comer o lanche preparado com carinho pelas nossas mães (naquela época as mães preparavam lanche para os filhos e não havia merenda escolar) e tomar um café com leite quentinho (a coca cola ainda não tinha aparecido, pelo menos lá em Turvo). De repente Jorge Geraldo, ops, Jotagê, avançou para cima de mim e me arrancou com suas garras (sei que exagero) o pão com salame de minhas mãos.
- O que é isto? – ainda falei, assustado.
- Vou comer seu lanche – rosnou, já enfiando a bocarra no pão macio – Além do mais você está gordo. (Era uma mentira deslavada).
- E o seu?
- Não tenho.
Era a primeira vez que eu tinha contato com uma pessoa do MSM, Movimento sem Merenda, germe do futuro MST. Pobre que era, ia sem lanche. Mas, e o que eu tinha com isto? Tentei-lhe tomar o pão das mãos (o que revelava minha capacidade de resistência, mas que ficou por aí), porém,  ele me empurrou com violência.
- Se vier, te dou um murro na cara – ameaçou-me. E para encerrar o assunto:  - Não conte para ninguém.
Foi duro ter que agüentar as outras aulas, com a barriga vazia e o estômago roncando alto. Quando cheguei em casa, quase desmaiando de fome, comi que nem um doido o almoço adredemente preparado. (Este advérbio é para aporrinhar os leitores). E, lógico, não contei nada. Porém, como nos dias seguintes, ele continuava roubando meus lanches, e eu já começava a passar mal de tanta fome, chegando quase a desmaiar, não resisti e contei para minha mãe. Ela ficou uma fera. Esperou, um dia, o Jorge Geraldo passar em frente de nossa casa – ele morava por aqueles lados – e o agarrou pelo braço. (Ah, que felicidade não ter o ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente, também conhecido como “É Cacete no Adulto”).
- Vem cá, seo... (não posso flar a palavra que ela disse, nestes tempos politicamente corretos), moleque sem vergonha...
- O que foi, Dona Marcinha, não fiz nada... (Quer dizer que, além de valentão, mentiroso -ainda estou por aqui com ele me chamar de gordo-, ele era dissimulado?)
- Como não fez? Anda roubando a merenda de meu filho. Se você fizer isto mais uma vez, vou falar com o seu pai o José Geraldo (olha aí a origem do Jorge Geraldo) e o entrego para o soldado.
- Tá bom, ta bom – choramingou o menino malvado, enquanto me olhava de soslaio.
Ah, meu Deus (naquela época acreditava nele), para que fui falar com minha mãe? Ele vai me matar, ou no mínimo quebrar meus óculos e meus dentes da frente. Preciso rezar para Nossa Senhora, minha madrinha me ajudar, senão estou lascado. Só um milagre pode me salvar daquele MSM...
Bem, o milagre aconteceu. Deus escreve torto por linhas certas, ou seria o contrário. Enquanto eu temia por uma desgraça pessoal (pequena, diga-se de passagem diante da que vou narrar), uma grande desgraça ia ocorrer naquela tarde.  João Tadeu, um grande centroavante do time do Areinha, pai de Tadeuzinho (essa mania de os pais colocarem nos filhos o próprio nome), meu amigo do peito, passou mal no campo de futebol, e bateu as chuteiras. Digo, as botas. Foi uma consternação geral. O altofalante da igreja comunicou o falecimento, os sinos tocaram, o povaréu ficou todo compungido e todos se vestiram com as melhores roupas e foram para o velório – que ia varar a noite. O enterro seria no dia seguinte. E lá estava eu, como sói acontecer, para dar apoio ao Tadeuzinho e consolá-lo. A noite esfriara e o sereno caíra com um frio tal que não consegui deixar de me resfriar. Quando fui para casa, tossindo e espirrando, minha mãe me preparou uma gemada quente e dois comprimidos – ensinamentos da vovó – e fui para a cama, esquecendo do que eu poderia enfrentar no dia seguinte. Só quando me levantei é que me dei conta do perigo que me esperava: e agora?  Comecei até a espirrar de nervoso. Pensei em não ir à escola. Mas era protelar o sofrimento. A angústia. Resolutamente (não disse que eu era corajoso?) fui para as aulas e na hora do recreio já saí correndo em direção do Jorge Geraldo para entregar-lhe altruisticamente o meu lanche. O nervosismo era grande, de tal forma que, quando cheguei perto dele e estendi-lhe o delicioso pão com salame, o meu psiquismo me traiu e me levou a espirrar em cima do lanche.
- Eca – ele disse. - Que nojo.
- Não vai querer?.
- Não – falou secamente. Aliás,a única coisa seca ali era a fala dele, diante do molhaceiro que meu espirro aprontara.
Daquele dia em diante,  oferecia sempre  o lanche para o Jotagê, mas antes ou cuspia, ou espirrava de mentirinha, ou lambia-o, e ele recusava no ato.
Pois é, o Jorge Geraldo além de valentão, mentiroso (gorda é a avó dele), dissimulado, era nojento. Não gostava de lanche espirrado...

2 comentários:

  1. Crônica gostosa, falando do dia-a-dia de uma criança, com coisas pueris que se vêm mais nos dias de hoje...gostei!
    Antônio Carlos Faria Paz

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    Respostas
    1. Gostei Antônio Carlos de sua percepção sobre o mundo da infância. Joptagê, coitado, depois que parou de comer meu lanche ficou muito magro.

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