Fazenda onde nasceu o blogueiro. Foto Luis Fernando Gomes

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quarta-feira, 11 de abril de 2012

NAMORO NA TERCEIRA IDADE

Comportamentos ou atitudes que surgem na sociedade sempre provocam resistências ou repressões. Depois, viram rotina e ficamos perplexos de como foram difíceis de serem aceitos. Assim foi com a calça comprida para mulheres (a coisa mais antiga que me lembro neste aspecto comportamento/resistência). As pílulas anticoncepcionais, a liberdade sexual das mulheres, o divórcio, o bebê de proveta, que evoluiu para inseminação artificial. A mudança do nome para os novos paradigmas vem facilitar a absorção do comportamento. O movimento gay, desde a escondida pederastia, o “sair do armário”, passando pelas paradas gays, o gay Power, o termo homoafetivo e terminando com  o casamento entre pessoas do mesmo sexo, aceito pelo Estado, mas ainda com ilhas de resistência aqui e acolá. A descriminalização da maconha está passando por esta fase. O Estado, tão repressor antigamente, traveste-se  hoje em liberal: mesmo sendo um crime, o porte ou a utilização da maconha, aceita que se façam passeatas pedindo a liberação da maconha. Um tema, ainda tabu, é o aborto. É proibido, mas uma brechinha aqui, outra, ali, logo, logo será derrubada mais esta barreira, e tudo será corriqueiro quanto a este comportamento.

 Entretanto tem um assunto que anda desafiando a sociedade, ou, mais particularmente, os indivíduos: o namoro na terceira idade. As pessoas estão vivendo mais e, como pode surgir o divórcio ou a morte de um dos cônjuges, eis que nos defrontamos com homens e mulheres mais velhos  “namorando”. E, quase sempre, com pessoas mais novas. Como apresentá-las: meu namorado, “namorido”, amiga, “ficante”, companheira, conhecida, ou fingir de bobo?  Como encarar o pai, a mãe, o avô ou a avó namorando? De mãozinhas dadas, trocando carícias e beijinhos? Saindo para o motel ou trazendo-o (a) para dormir em casa?

Vinícius de Moraes ficou uma fera quando uma de suas seis ou sete mulheres – 30 anos mais nova – foi confundida com sua filha.

Mas eis que, de repente, surge Chico Buarque.

O namoro do Chico Buarque com a cantora ruiva Thais Gulin rendeu este primor de blues  ESSA PEQUENA, cuja letra vai aí abaixo. Mas rendeu também a interessante crônica UM TEMPO SEM NOME da escritora Rosiska Darcy de Oliveira sobre “o novo conceito de envelhecer”.

Estamos salvos.


Essa Pequena
Chico Buarque

Meu tempo é curto, o tempo dela sobra
Meu cabelo é cinza, o dela é cor de abóbora
Temo que não dure muito a nossa novela, mas
Eu sou tão feliz com ela
Meu dia voa e ela não acorda
Vou até a esquina, ela quer ir para a Flórida
Acho que nem sei direito o que é que ela fala, mas
Não canso de contemplá-la
Feito avarento, conto os meus minutos
Cada segundo que se esvai
Cuidando dela, que anda noutro mundo
Ela que esbanja suas horas ao vento, ai
Às vezes ela pinta a boca e sai
Fique à vontade, eu digo, take your time
Sinto que ainda vou penar com essa pequena, mas
O blues já valeu a pena.


 
          Um tempo sem nome
Rosiska Darcy de Oliveira, O Globo, 21/01/12

Com seu cabelo cinza, rugas novas e os mesmos olhos verdes, cantando madrigais para a moça do cabelo cor de abóbora, Chico Buarque de Holanda vai bater de frente com as patrulhas do senso comum. Elas torcem o nariz para mais essa audácia do trovador. O casal cinza e cor de abóbora segue seu caminho e tomara que ele continue cantando “eu sou tão feliz com ela” sem encontrar resposta ao “que será que dá dentro da gente que não devia”.
Afinal, é o olhar estrangeiro que nos faz estrangeiros a nós mesmos e cria os interditos que balizam o que supostamente é ou deixa de ser adequado a uma faixa etária. O olhar alheio é mais cruel que a decadência das formas. É ele que mina a autoimagem, que nos constitui como velhos, desconhece e, de certa forma, proíbe a verdade de um corpo sujeito à impiedade dos anos sem que envelheça o alumbramento diante da vida .
Proust, que de gente entendia como ninguém, descreve o envelhecer como o mais abstrato dos sentimentos humanos. O príncipe Fabrizio Salinas, o Leopardo criado por Tommasi di Lampedusa, não ouvia o barulho dos grãos de areia que escorrem na ampulheta. Não fora o entorno e seus espelhos, netos que nascem, amigos que morrem, não fosse o tempo “um senhor tão bonito quanto a cara do meu filho“, segundo Caetano, quem, por si mesmo, se perceberia envelhecer? Morreríamos nos acreditando jovens como sempre fomos.
A vida sobrepõe uma série de experiências que não se anulam, ao contrário, se mesclam e compõem uma identidade. O idoso não anula dentro de si a criança e o adolescente, todos reais e atuais, fantasmas saudosos de um corpo que os acolhia, hoje inquilinos de uma pele em que não se reconhecem. E, se é verdade que o envelhecer é um fato e uma foto, é também verdade que quem não se reconhece na foto, se reconhece na memória e no frescor das emoções que persistem. É assim que, vulcânica, a adolescência pode brotar em um homem ou uma mulher de meia-idade, fazendo projetos que mal cabem em uma vida inteira.
Essa doce liberdade de se reinventar a cada dia poderia prescindir do esforço patético de camuflar com cirurgias e botoxes — obras na casa demolida — a inexorável escultura do tempo. O medo pânico de envelhecer, que fez da cirurgia estética um próspero campo da medicina e de uma vendedora de cosméticos a mulher mais rica do mundo, se explica justamente pela depreciação cultural e social que o avançar na idade provoca.
Ninguém quer parecer idoso, já que ser idoso está associado a uma sequência de perdas que começam com a da beleza e a da saúde. Verdadeira até então, essa depreciação vai sendo desmentida por uma saudável evolução das mentalidades: a velhice não é mais o que era antes. Nem é mais quando era antes. Os dois ritos de passagem que a anunciavam, o fim do trabalho e da libido, estão, ambos, perdendo autoridade. Quem se aposenta continua a viver em um mundo irreconhecível que propõe novos interesses e atividades. A curiosidade se aguça na medida em que se é desafiado por bem mais que o tradicional choque de gerações com seus conflitos e desentendimentos. Uma verdadeira mudança de era nos leva de roldão, oferecendo-nos ao mesmo tempo o privilégio e o susto de dela participar.
A libido, seja por uma maior liberalização dos costumes, seja por progressos da medicina, reclama seus direitos na terceira idade com uma naturalidade que em outros tempos já foi chamada de despudor. Esmaece a fronteira entre as fases da vida. É o conceito de velhice que envelhece. Envelhecer como sinônimo de decadência deixou de ser uma profecia que se autorrealiza. Sem, no entanto, impedir a lucidez sobre o desfecho.
”Meu tempo é curto e o tempo dela sobra”, lamenta-se o trovador, que não ignora a traição que nosso corpo nos reserva. Nosso melhor amigo, que conhecemos melhor que nossa própria alma, companheiro dos maiores prazeres, um dia nos trairá, adverte o imperador Adriano em suas memórias escritas por Marguerite Yourcenar.
Todos os corpos são traidores. Essa traição, incontornável, que não é segredo para ninguém, não justifica transformar nossos dias em sala de espera, espectadores conformados e passivos da degradação das células e dos projetos de futuro, aguardando o dia da traição.Chico, à beira dos setenta anos, criando com brilho, ora literatura , ora música, cantando um novo amor, é a quintessência desse fenômeno, um tempo da vida que não se parece em nada com o que um dia se chamou de velhice. Esse tempo ainda não encontrou seu nome. Por enquanto podemos chamá-lo apenas de vida.

ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA é escritora.

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