Fazenda onde nasceu o blogueiro. Foto Luis Fernando Gomes

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terça-feira, 1 de novembro de 2011

CENAS DE UM VELÓRIO

Novembro, em nossa cultura ocidental cristã, é um mês marcado pela morte, pelos mortos, ainda que o dia  dedicado a estes seja um só: dia 02. A várias maneiras de encarar a morte, o passamento de alguém. Deixando o lado filosófico ou psicológico do assunto, creio que um “causo” envolvendo velório cai bem. Reescrevi este texto que teve uma tentativa de filmagem no interior de São Paulo. Os habitantes da cidadezinha não gostaram muito do desfecho e quase bateram nos atores e diretor.
Cenas de um velório.

    Não foi a própria D. Maria que deu a notícia para o bairro porque, afinal, a morta era ela mesma.  Conhecida fofoqueira e renomada benzedeira, D. Maria do Chico Dunga do Zé das Cabritas, assim chamada porque o marido era o Chico Dunga filho do Zé das Cabritas, cujo nome derivava de sua profissão: criador de cabritas,  não primava pela discrição. Havia mesmo até relutantes clientes que afirmavam tê-la visto cochichar com os espíritos alguns casos que tinham ocorrido na rua. A família Arcanjo Bicco, um rico fazendeiro, pai de prendadas e lindas filhas, era o alvo preferido de D. Maria. Mal chegavam aqueles dois empertigados jovens da capital para o namoro de fim de semana com as filhas do fazendeiro, lá estava a benzedeira com os olhos colados nas frestas da janela e os ouvidos mais apurados do que satélites estadounidense ao redor do mundo. De modo que D. Maria se transformara no terror de namorados e namoradas do bairro e esperança das mães, que viam assim recompensadas as suas orações: alguém iria falar se o casalzinho estava passando dos limites, se a mão estava andando mais que as pernas ou se o pessoal não conseguia ficar com as pernas no chão enquanto sentados no banco do jardim. Quando a notícia correu de boca em boca, as moças sentiram um alívio, os rapazes esfregaram as mãos e as mães soluçaram um pouco mais além do que normalmente soluçam diante dos filhos “ingratos”.
    E para lá se foram as piedosas e humildes almas cristãs: para o velório, pois defunto é para ser velado e chorado. Depois de arrumada e ajeitadinha em seu novel (gosto muito de “novel”) caixão virgem de defunto, ficou ela exposta à visitação pública de todos os que se condoíam de sua sina, ou sorte, dependendo do gosto. À frente de todos, debruçada sobre o corpo moreno e inerte da mãe, estava Luzia, solteirona convicta, apesar das tentativas frustradas em cima dos filhos do fazendeiro, guapos e fortes rapazes. Porém, ao contrário do que se poderia esperar, não chorava a filha. Mastigava violentamente um pão com manteiga, com o máximo da boa vontade, lambendo os beiços besuntados daquela cor amarela e forte da manteiga pura, feita ali mesmo. De vez em quando, algum farelo de pão caia sobre o rosto da finada, e a filha, solícita, mandava-o para a garganta abaixo, sem antes limpar a face da velha, que tinha ficado manchada com uns pingos de manteiga, que, com o calor, ficava mais derretida.
Vando, um jovem garoto, esguio e magro, nos seus quinze anos, simples vizinho e admirador das façanhas de D. Maria, chorava sofridas lágrimas no canto escuro do estreito corredor. De vez em quando, assuava violentamente o nariz, quando catarro e lágrimas se misturavam numa gosma pastosa que ele, cuidadosamente depositava num lenço perfumado, providencialmente colocado no bolso da camisa.
A outra filha, vinda da capital, fora avisada  de que a mãe estava muito mal, que viesse depressa. Como não tinha vindo e a velha “batera as botas”, esperava-se que com sua chegada alguma cena dramático-trágica pudesse ocorrer. Vã esperança daqueles que esperavam uma grandiloqüência digna das tragédias de Eurípedes. Na verdade, ela chegou e deu de encontro com aquele caixão esticado no meio da sala: Mãiiinnn, mãinnn- falou baixinho, com ênfase no “in”.
-O que você está fazendo aí?
Como a mãe não respondeu e sabendo ser a progenitora turrona e de poucas palavras, fez um muxoxo. Vendo a irmã comendo pão com manteiga, avançou e quis tomar o “lanche”. “Tô Cuma fome danada.” Foi preciso “apartar” as duas, pois entraram numa luta corporal de fazer inveja às lutas tailandesas.  D. Esquentina, digna e gentil senhora, vizinha das mais sérias e discretas, segredou ao ouvido da recém chegada: “Minha filha, vamos lá em casa, que `pão` não falta..” A moça olhou-a surpresa. Esse pão se referia ao pão da padaria ou aos “pães” que eram os filhos. D. Esquentina tratou de colocar as coisas no lugar: “Será o fim da sua fome, filha; tem manteiga também.”
E como tudo o que é bom acaba, o velório também chegou ao seu final. Os sinos da igreja matriz repicavam dolentemente, chamando o povo para o enterro. Com muito respeito, os fiéis fecharam o caixão, não olhando para a cara da morta, pois dizem que neste momento surge uma tristeza no rosto de quem está aí dentro. E saíram silenciosamente. Os carregadores perceberam algo meio estranho: estava leve demais aquela morta. Entreolharam-se, mas não comentaram nada. Foram em frente, devagar. Continuava leve a morta. De repente alguém gritou: “Olha lá, olha lá!” Todo mundo parou e olhou para trás: no cavalete imperturbável, continuava deitada a D. Maria. A parte de baixo do caixão se despregara e o corpo não seguira com os carregadores. Deu um “frouxo de riso” no pessoal que ninguém teve mais força para carregar o corpo que, na verdade, pesava como chumbo. Foi preciso chamar um táxi. Que cobrou bandeira Dois.







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