POR REINALDO LOPES
E lá vamos nós pra mais uma série
aqui no blog, idolatrado leitor. Aproveitando o lançamento de
mais uma superprodução bíblica, “Êxodo – Deuses e Reis”, dirigida por Ridley
Scott e com ninguém menos que Christian Bale (o Báteman!) no papel principal,
acho que é bacana mostrar qual é o estado da arte da pesquisa histórica e
arqueológica sobre as origens do povo de Israel.
Antes do “prato principal”, que é
Moisés, o Êxodo e a conquista da Terra Prometida, bem como o suposto papel de
Moisés ao escrever os primeiros livros da Bíblia, vamos recuar um pouquinho (ou
um “poucão”; são vários séculos, na verdade) no tempo e tratar da historicidade
do homem que seria o ancestral de todo o povo de Israel (e também dos árabes,
segundo a tradição), o primeiro monoteísta, o Pai dos Fiéis: Abraão. Temos boas
razões para aceitar que Abraão é um personagem histórico cuja vida, conforme
relatada na Bíblia, aconteceu mais ou menos daquele jeito mesmo?
Resposta curta: não dá para
saber. Mas a resposta comprida é interessante e complexa. Vamos a ela.
Só que antes, um parêntese: não
estou aqui para contradizer quem, pela fé, acredita em todas as narrativas
sobre Abraão que constam da Bíblia. A nossa pergunta aqui é diferente: até que
ponto é possível checar essas histórias usando a investigação histórica
independente, isto é, que quer apenas verificar os fatos, sem o objetivo de
derrubar a fé ou de defendê-la. Beleza?
VIAJANTE DA IDADE DO BRONZE
Com base na cronologia bíblica,
calcula-se que Abraão teria vivido em torno dos anos 2000 a.C. e 1800 a.C., bem
no meião da Idade do Bronze. Nomes parecidos com o dele — como “Abi-ramu” foram
identificados em contratos babilônicos da época, então de fato se trata de um
nome típico do Oriente Próximo da época. Outro fato plausível a respeito do
patriarca hebreu é que, tal como se conta a respeito dele, de fato há relatos
sobre nômades da Mesopotâmia viajando entre entre o atual Iraque e o atual
território israelense-palestino nessa época.
Outro pequeno detalhe a favor da
historicidade do personagem é o fato de que a tradição oral de um grupo muitas
vezes acaba preservando alguns fatos sobre a vida de um ancestral famoso (como
ele, claro) e que os israelitas não teriam muitos motivos para inventar um
antepassado que chegou à terra deles como um viajante, e não como alguém que
sempre morou lá, já que isso tornaria a posse da terra por parte deles algo
teoricamente mais precário. Se eles contavam essa história, é porque devia
haver algum fundo de verdade nela, segundo alguns especialistas.
Bem, esse é o lado
pró-historicidade de Abraão do debate. A partir de agora começam os problemas,
e são muitos.
O primeiro, óbvio, é que não há
nenhuma referência contemporânea direta a Abraão (ou a Isaac, ou a Jacó) fora
da Bíblia. Ninguém dos povos vizinhos dos patriarcas sabia coisa alguma a
respeito dele. Isso não necessariamente é um problema, óbvio — eles eram apenas
chefes tribais de pouca monta, segundo diz o texto bíblico, então não tem
porque os reinos poderosos da região falarem deles.
ESQUISITICES BÍBLICAS
Por incrível que pareça, é o
próprio texto da Bíblia que lança mais dúvidas sobre a existência histórica de
Abraão e sua família, na verdade. O motivo pode ser designado por uma única
palavra: anacronismos.
Explico. Se o que se conta sobre
Abraão e companhia é um relato histórico confiável e preciso, e não uma
tradição lentamente modificada pela passagem do tempo, deveríamos esperar que o
texto retratasse de forma correta como era o mundo do Oriente Médio por volta
de 2000 a.C. Só que não é isso o que acontece nas narrativas do Gênesis.
Para citar três pontos bem fáceis
de captar:
1)Tanto Abraão quanto seu filho
Isaac têm relações diplomáticas, digamos, com governantes filisteus. Só que o
povo filisteu só chegou à Palestina, na verdade, séculos depois da era dos
patriarcas, por volta de 1200 a.C. Ooops.
2)As narrativas estão cheias de
referências a caravanas de camelos (melhor dizendo, dromedários, mas camelo é o
termo genérico). Só que os camelos só foram domesticados séculos depois de
Abraão, mais uma vez.
3)Os textos da época patriarcal
também falam do comércio de essências e especiarias, como bálsamo e mirra.
Outro problema, já que esse tipo de comércio só se consolidou bem depois do ano
1000 a.C.
Esses detalhes podem parecer
bobagens, mas o que eles deixam claro é que a narrativa foi escrita muito, mas
muiiiito tempo depois da época de Abraão, o que obviamente solapa sua
confiabilidade histórica.
Mas talvez o ponto mais
importante é o fato de que os mesmíssimos incidentes da narrativa parecem se
repetir diversas vezes na vida do mesmo personagem, e às vezes na vida de dois
personagens diferentes. Tem o problema da esterilidade das matriarcas (Sara,
Rebeca e Raquel), que segue sempre mais ou menos o mesmo padrão; tem o fato de
que, mais de uma vez, Abraão visita um local com Sara, finge que a esposa é sua
irmã, o rei local cobiça a mulher e quase a toma por esposa, descobrindo a
verdade no último minuto (aliás, essa mesma história também acontece no caso de
Isaac).
Esses detalhes não fazem muito
sentido se aquilo é uma narrativa histórica, factual — quer dizer, quais são as
chances de essa cena esquisita com a esposa-irmã acontecer tantas vezes do
mesmo jeito? Mas faz bastante sentido se aquilo são narrativas folclóricas
contadas sobre um ancestral distante e semilendário.
Mário Cleber: que artigo interessante, histórico e até mítico.
ResponderExcluirAntônio Carlos Faria Paz. - Itapecerica/MG