Fazenda onde nasceu o blogueiro. Foto Luis Fernando Gomes

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quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Abraão existiu?

Este texto já o tinha escolhido bem antes dos acontecimentos tenebrosos em Paris e antes mesmo de eu ver o filme "Exodus, Deuses e Reis". Livros das religiões monoteistas devem ser lidos com respeito, admiração pela beleza do estilo e das histórias. Mas existem furos. E são estes furos que o autor de outro blog coloca. Leiamos.

POR REINALDO LOPES

E lá vamos nós pra mais uma série aqui no blog, idolatrado leitor. Aproveitando o lançamento de mais uma superprodução bíblica, “Êxodo – Deuses e Reis”, dirigida por Ridley Scott e com ninguém menos que Christian Bale (o Báteman!) no papel principal, acho que é bacana mostrar qual é o estado da arte da pesquisa histórica e arqueológica sobre as origens do povo de Israel.
Antes do “prato principal”, que é Moisés, o Êxodo e a conquista da Terra Prometida, bem como o suposto papel de Moisés ao escrever os primeiros livros da Bíblia, vamos recuar um pouquinho (ou um “poucão”; são vários séculos, na verdade) no tempo e tratar da historicidade do homem que seria o ancestral de todo o povo de Israel (e também dos árabes, segundo a tradição), o primeiro monoteísta, o Pai dos Fiéis: Abraão. Temos boas razões para aceitar que Abraão é um personagem histórico cuja vida, conforme relatada na Bíblia, aconteceu mais ou menos daquele jeito mesmo?
Resposta curta: não dá para saber. Mas a resposta comprida é interessante e complexa. Vamos a ela.
Só que antes, um parêntese: não estou aqui para contradizer quem, pela fé, acredita em todas as narrativas sobre Abraão que constam da Bíblia. A nossa pergunta aqui é diferente: até que ponto é possível checar essas histórias usando a investigação histórica independente, isto é, que quer apenas verificar os fatos, sem o objetivo de derrubar a fé ou de defendê-la. Beleza?
VIAJANTE DA IDADE DO BRONZE
Com base na cronologia bíblica, calcula-se que Abraão teria vivido em torno dos anos 2000 a.C. e 1800 a.C., bem no meião da Idade do Bronze. Nomes parecidos com o dele — como “Abi-ramu” foram identificados em contratos babilônicos da época, então de fato se trata de um nome típico do Oriente Próximo da época. Outro fato plausível a respeito do patriarca hebreu é que, tal como se conta a respeito dele, de fato há relatos sobre nômades da Mesopotâmia viajando entre entre o atual Iraque e o atual território israelense-palestino nessa época.
Outro pequeno detalhe a favor da historicidade do personagem é o fato de que a tradição oral de um grupo muitas vezes acaba preservando alguns fatos sobre a vida de um ancestral famoso (como ele, claro) e que os israelitas não teriam muitos motivos para inventar um antepassado que chegou à terra deles como um viajante, e não como alguém que sempre morou lá, já que isso tornaria a posse da terra por parte deles algo teoricamente mais precário. Se eles contavam essa história, é porque devia haver algum fundo de verdade nela, segundo alguns especialistas.
Bem, esse é o lado pró-historicidade de Abraão do debate. A partir de agora começam os problemas, e são muitos.
O primeiro, óbvio, é que não há nenhuma referência contemporânea direta a Abraão (ou a Isaac, ou a Jacó) fora da Bíblia. Ninguém dos povos vizinhos dos patriarcas sabia coisa alguma a respeito dele. Isso não necessariamente é um problema, óbvio — eles eram apenas chefes tribais de pouca monta, segundo diz o texto bíblico, então não tem porque os reinos poderosos da região falarem deles.
ESQUISITICES BÍBLICAS
Por incrível que pareça, é o próprio texto da Bíblia que lança mais dúvidas sobre a existência histórica de Abraão e sua família, na verdade. O motivo pode ser designado por uma única palavra: anacronismos.
Explico. Se o que se conta sobre Abraão e companhia é um relato histórico confiável e preciso, e não uma tradição lentamente modificada pela passagem do tempo, deveríamos esperar que o texto retratasse de forma correta como era o mundo do Oriente Médio por volta de 2000 a.C. Só que não é isso o que acontece nas narrativas do Gênesis.
Para citar três pontos bem fáceis de captar:
1)Tanto Abraão quanto seu filho Isaac têm relações diplomáticas, digamos, com governantes filisteus. Só que o povo filisteu só chegou à Palestina, na verdade, séculos depois da era dos patriarcas, por volta de 1200 a.C. Ooops.
2)As narrativas estão cheias de referências a caravanas de camelos (melhor dizendo, dromedários, mas camelo é o termo genérico). Só que os camelos só foram domesticados séculos depois de Abraão, mais uma vez.
3)Os textos da época patriarcal também falam do comércio de essências e especiarias, como bálsamo e mirra. Outro problema, já que esse tipo de comércio só se consolidou bem depois do ano 1000 a.C.
Esses detalhes podem parecer bobagens, mas o que eles deixam claro é que a narrativa foi escrita muito, mas muiiiito tempo depois da época de Abraão, o que obviamente solapa sua confiabilidade histórica.
Mas talvez o ponto mais importante é o fato de que os mesmíssimos incidentes da narrativa parecem se repetir diversas vezes na vida do mesmo personagem, e às vezes na vida de dois personagens diferentes. Tem o problema da esterilidade das matriarcas (Sara, Rebeca e Raquel), que segue sempre mais ou menos o mesmo padrão; tem o fato de que, mais de uma vez, Abraão visita um local com Sara, finge que a esposa é sua irmã, o rei local cobiça a mulher e quase a toma por esposa, descobrindo a verdade no último minuto (aliás, essa mesma história também acontece no caso de Isaac).
Esses detalhes não fazem muito sentido se aquilo é uma narrativa histórica, factual — quer dizer, quais são as chances de essa cena esquisita com a esposa-irmã acontecer tantas vezes do mesmo jeito? Mas faz bastante sentido se aquilo são narrativas folclóricas contadas sobre um ancestral distante e semilendário.






Um comentário:

  1. Mário Cleber: que artigo interessante, histórico e até mítico.
    Antônio Carlos Faria Paz. - Itapecerica/MG

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