Dia desses eu
comi um pastel gorduroso que ficou entalado na minha garganta; comprei, então
uma lata de Coca-Cola. Nela estava escrita a palavra: Felicidade. Esta palavra
não significa mais nada, está morta – do contrário, jamais poderia ser
estampada aos milhões em uma lata de refrigerantes. Isso não é mística, isso é
economia, isso é teoria da comunicação. De onde chegamos à conclusão de que, ao
mesmo tempo, ela está se tornando a palavra mais valiosa de todas, para a
felicidade da indústria. Gostou do trocadilho? Foi péssimo, eu sei.
Voltando à
felicidade: se eu posso estampar essa palavra em uma lata de refrigerante, numa
marca de supermercados, num pote de margarina ou em qualquer outro produto, é
porque existe algum consenso em torno dessa palavra, uma espécie de
entendimento comum onde “feliz” = bom, “infeliz” = não-bom. Na verdade isso
chama-se redundância – quando uma mensagem possui zero ou quase zero de
informação nova.
Ah sim, existe
uma segunda dimensão desse pensamento, onde “feliz” = lucrativo, e “infeliz” =
mais lucrativo ainda. Tente imaginar a água da sua descarga girando ao
mesmo tempo nos dois sentidos. Eles fabricam Rivotril com essa água. Cerveja
também.
Agora, espere
um pouco, eu garanto que não sou um sujeito deprimido e rancoroso destilando
meu veneno contra a humanidade de um quarto escuro. Se você me convidar para
conhecer sua casa ou dar uma volta, eu irei com o maior prazer, daremos risadas
e será ótimo; o problema não é, de modo algum, viver momentos felizes.
O problema é a
compreensão da palavra felicidade que se tornou o lugar comum. “Dinheiro não traz felicidade, todo mundo
sabe disso”. Eu sei, eu li todos esses textos que você leu,
horríveis por sinal. “Largou
tudo pra ser feliz”, bla-bla-bla. Palestras do Steve Jobs:
trabalhar com o que você gosta = felicidade. Sério, eu vi tudo isso, o que quer
dizer que tudo isso era pra mim também. Céus, me sinto péssimo. Isso não deve
ser coincidência.
Eu vou deixar
você fazer essa pesquisa: digite “gente feliz” no Google imagens. Eu tive que
olhar de novo pra ver se eu não tinha digitado “um bando de idiotas jogando as
mãos pro alto, gargalhando sem motivo aparente” porque é justamente isso que o
Google cospe para “gente feliz”. Mas isso é ilustrativo.
Se estamos
falando sobre “felicidade”,
estamos automaticamente falando sobre “infelicidade”, ou “tristeza”, isso
acontece 100% das vezes. A felicidade, assim como qualquer valor de natureza
humana, é dual, projeta uma sombra. Vou tentar reescrever um conto zen-budista
que eu ouvi em uma certa ocasião, muito belo, para ilustrar o que eu quero
dizer a seguir:
O
mestre de um templo zen-budista no Japão havia falecido. No cortejo fúnebre,
muitas flores e cânticos; um clima leve pairava no ambiente. Os monges e
pessoas que atendiam a cerimônia haviam absorvido muitos dos ensinamentos do
mestre, e sabiam que a vida era passageira. O mestre havia morrido em paz; não
foi uma morte sofrida nem dolorosa. No entanto, o discípulo mais próximo do
mestre, considerado o mais sábio entre os monges, estava em prantos. Chorava,
tremia e soluçava copiosamente. Os outros monges estavam perplexos; como ele, o
mais sábio, cotado para ser o próximo mestre, estava em um estado tão
miserável? Um deles se aproximou do monge que chorava e perguntou: “O que há
contigo? Não sabe que o mestre se encontra unido novamente com a natureza e a
divindade? Não há motivo para lágrimas.”
Ao que
o monge que chorava respondeu: “Querido irmão, meu espírito está em paz. Quem
chora são meus olhos, que não poderão mais enxergar o mestre. Quem treme é o
meu corpo, que não poderá sentir a proximidade do mestre. Quem agoniza são meus
ouvidos, que não mais escutarão suas palavras. Meu corpo se acostumou à
presença do mestre e agora lamenta a sua partida. Eu não desejo me opor a ele;
deixarei que chore, deixarei que sofra, até que se acostume à sua nova vida,
longe do mestre.”
Você vê? Esse
conto é muito belo:
1.
O mestre morreu. O que fazer? Claro, todos
os envolvidos tinham algum nível de elevação espiritual. Um dos monges vem ao
monge que chora e diz: o
que você está fazendo? Do que vale todo o conhecimento que o mestre te
transmitiu? Os outros monges estão olhando. Recomponha-se! Ele
está preocupado com as aparências.
2.
Independente de todo o seu conhecimento, o
monge que chorava não
tentou distorcer a realidade; deixou seus sentimentos aflorarem e
viveu o momento de maneira honesta e franca. Ele estava triste, mas estava em paz. Esta é a parte mais importante do conto. Mas nós dormimos nessa
hora do filme.
Quando Nelson
Mandela morreu, você compartilhou uma foto dele em alguma rede social, com uma
mensagem de “valeu, Madiba!”. Mas o que você deveria ter feito é ter pensado:
“o que raios eu estou fazendo com a minha vida?”. Aquele homem passou 27
anos dentro de uma prisão. Você acha que Mandela estava preocupado com
felicidade nesse período? Se ele estivesse preso a um ideal de felicidade desse
que nós compramos - fazer
o que gosta, trabalhar com o que gosta, nos darmos o valor que merecemos etc
- ele teria se matado ou enlouquecido, provavelmente os dois.
Um ano após o outro, acordando no mesmo lugar, vendo as mesmas pessoas, o mesmo
Sol quadrado, sem poder sair… é uma vida dura!
Mas Mandela
viu algo mais nessa situação – ele não só resistiu aquele tempo todo; ele saiu
e realizou grandes feitos. Ele fez
o que havia para ser feito, o que a vida lhe apresentou como
possibilidade. Suas quase três décadas encarcerado certamente causaram
transformações profundas em seu íntimo, a ponto de declarar que não sentia ódio
de seus captores, sob o risco de tornar-se igual a eles. Mas essas histórias
são boas apenas para serem vistas, não é mesmo? Você quer só a felicidade,
esqueça essa parte do sofrimento, da luta, da persistência. A indústria ficará
muito feliz em te ajudar nessa parte. A Internet também.
Um tempo atrás
várias pessoas compartilharam um link no Facebook; ele se chamava “Vale a pena largar tudo em busca da felicidade?“. Eu abro a página e BANG, lá está um hipster sorridente, ganhando um
beijinho no rosto de sua namorada. Calma lá, refreie sua raiva, todos amamos
odiar hipsters, mas isso também é um truque da mídia – eles são ótimos “bois de
piranha”, mas deixemos isso pra outro momento. De qualquer modo, um começo mais
do que suspeito. Eu começo a ler o texto e é necessário escalar uma muralha de
propaganda, branding puro: cas amento com uma mulher bonita e
inteligente, prêmios profissionais, lua-de-mel, lançamento de livro, banda,
vida em São Paulo etc.
Logo no
segundo parágrafo eu já desconfiava de uma armadilha, mas no trecho a seguir eu
tive certeza:
De
repente, um monte de outras coisas começaram a aparecer como necessidades
urgentes para que minha vida fosse plena: “você precisa comprar um carro pra
ser feliz”, “você precisa comprar um pacote de viagem anual pra ser feliz”,
“você precisa comprar aquele ingresso caríssimo de festival cheio de bandas
(que você nunca ouviu na vida) pra ser feliz” e, finalmente, “você precisa
comprar uma máquina de Nespresso pra ser feliz”.
Espere aí
garotão, você quer me dizer que essas “necessidades urgentes” simplesmente
pularam na sua frente, surgiram na sua vida como um fator inevitável? Aula
número zero da faculdade de propaganda e marketing, extraído de um site
genérico:
Um dos
conceitos mais simples do Marketing é a definição do Target, o público alvo. O
público alvo é o conjunto de pessoas que pretendemos chegar com a nossa
mensagem. Existem diversas definições para este conceito, resumidamente é quem
pretendemos que compre os nossos produtos ou serviços.
Se você
está vendo, é para você. Céus, se você faz
questão de explicitar a propaganda da Nespresso,
é muito possível imaginar o tipo de mídia que você anda consumindo e a
categoria de público-alvo da qual você faz parte. A essa altura do texto eu
estava tentando montar o quebra-cabeça, mas não precisei me esforçar, o mapa
das peças foi fornecido algumas linhas depois:
Sim,
porque eu (que era editor-chefe dos sites do Núcleo Jovem da Editora Abril) e a
Karin Hueck (que era editora da SUPERINTERESSANTE) pedimos demissão no
começo de agosto e acabamos de mudar temporariamente para Berlim (a atual
“capital mundial da criatividade”) para tocarmos essa investigação.
Ugh. Por onde
começar? Editora
Abril? “Mas não é aquela que edita a revista V…” Shh,
fale baixo, já está constrangedor o suficiente. Mudar para Berlim para investigar a felicidade? OK,
agora era o momento em que eu esperava algum tipo de método, alguma proposta,
diga o que você vai fazer em Berlim para tocar essa “investigação” – mas não,
nada disso, talvez isso, talvez aqu ilo
e a chave de ouro do texto (sim, fica pior):
O
que oferecemos para vocês é uma carona na nossa viagem de busca por respostas
que possam levar à felicidade. Porque – como ensina o filme “Na Natureza
Selvagem” – “a felicidade só faz sentido quando é compartilhada”.
Se você
está aprendendo coisas
com filmes de Hollywood, feche as portas, apague a luz, você é mídia dos pés à
cabeça. A última frase dessa parte é reveladora. Felicidade compartilhada: não no sentido de “venha almoçar na minha casa” mas no sentido de “olhe a
foto do que eu fiz no almoço, ficou linda com esse filtro”. Esse site se
chama Gluck Project – isso
é século XXI, a “felicidade” como um projeto.
Há textos com títulos típicos de revistas sensacionalistas: como ser feliz no trabalho, como deixei
de ser corrupta (?!), como
a psicologia pode ajudar, como ter um corpo perfeito para o verão etc.
“Mas o título sobre o corpo de
verão era irônico.” Mas você leu de qualquer jeito, não? Eu
li. É assim que funciona.
Esse site é um
produto da mídia; eles dizem ter abandonado os empregos na Abril, porém o site
é repleto de links para matérias de seus antigos trabalhos. Você pode
abandonar a mídia, mas a mídia não abandona você. Gostaram dessa? Dá uma boa
tatuagem. Aliás, eles já colocaram no site o link “Na mídia”, onde você pode ver o que andaram
falando na mídia sobre o projeto,
que não é sobre felicidade, de modo algum, é sobre eles mesmos. Aliás, é a
mesma mídia que vendeu as propagandas que nosso amigo tanto questionou,
inclusive a máquina Nespresso –
lembra da água privada girando nos dois sentidos ao mesmo tempo?
Todos esses
discursos midiáticos sobre felicidade são
embustes, simplesmente porque ser
feliz é análogo a um dia eterno de Sol; no começo é gostoso, mas você vai
sentir falta de ver as estrelas. Felicidade é um conceito manipulável; enquanto
você estiver buscando a felicidade,
você pode muito bem estar correndo atrás de um unicórnio ou uma máquina de café
ou qualquer que seja a ideia que você comprou a respeito disso. E enquanto
isso, você gasta horas lendo sobre a felicidade alheia na Internet. OK, eu
também li, estamos juntos nessa, mas estou tentando aqui fazer um rationale disso
tudo.
É possível que
sua vida não lhe permita nem sequer pensar em ser feliz. Você nasceu pobre, num
lugar horrível, tudo lhe falta, desde o mais básico. O que fazer? O outro
extremo também vale: você nasceu rico, num lugar maravilhoso, nada lhe falta. O
que fazer? O problema é que você está perdido - esse trabalho não é bom pra mim, essa
vida não é a que eu quero, meus amigos são chatos, meu país está perdido –
existe uma situação ideal em sua mente que não corresponde com a realidade. E o
problema nesse caso não é, de modo algum, a realidade. A diferença é que o
pobre não tem tempo parainvestigar,
ele tem que acordar e fazer o que deve ser feito para colocar alimento dentro
de sua casa. Vários estudos já apontaram que há altos índices de felicidade em
países extremamente pobres. Como é isso?!
Vou descer do
muro agora. Existiu um homem na Grécia antiga que saía por aí nas ruas,
apontando o dedo para as pessoas e gritando: conhece-te a ti mesmo! Seu nome era
Sócrates e seu destino foi trivial, foi obrigado a beber veneno por causa de
seus pensamentos, nada de mais. Mas essa frase é reveladora - conhece-te a ti mesmo. É o
conselho mais precioso que já foi dado para a humanidade, e muitos o repetiram
– Jesus, Buda, Nietzsche - torna-te
o que tu és! Foi precisamente isso que Mandela fez. Não há
investigação, há fazer o
que deve ser feito; enquanto você buscar na mídia esse tipo de
resposta, “como ser feliz”, o máximo que irá acontecer é entulhar sua mente com
um monte de histórias que só tem uma coisa em comum: você não faz parte delas,
você é um espectador, um
dia você vai fazer aquilo… Vamos observar a coisa de uma forma
mais transcendental do que mundana? O místico Osho disse:
Se a
felicidade se tornar o grande objetivo a ser alcançado em sua vida, então ela será
para você um verdadeiro pesadelo. Mas quando, para você, a felicidade está nas
pequenas coisas, na forma pela qual você as vive (…) sua casa torna-se um
templo, seu corpo se torna a morada de Deus, e, para onde quer que você olhe e
qualquer coisa que você toque, se torna imensamente bela, sagrada – então, a
felicidade é liberdade.
Mas isso é
extremamente difícil, não é mesmo? Num metrô lotado, no seu emprego, no seu
casamento… é difícil viver as pequenas coisas. Por isso é mais fácil acompanhar
essas histórias da mídia, repletas de grandiose, pretensão, e sempre associadas ao
mundo do consumo, do mercado - abandonar empregos, mudar de país, doar
tudo o que você tem, fazer uma dieta extrema – jamais pode ser uma coisa
pequena e simples, pois assim todos poderiam fazê-lo e não só alguns
personagens midiáticos.
Meu deus. Eu
preciso de uma Coca-Cola. Das grandes. Para encher um balde e enfiar meu
cérebro dentro.
Grande Mário Cleber!!!
ResponderExcluirTaí um texto que merece ser lido e relido de tempo em tempo....
Bj!
Ethel
Excelente texto, nos faz pensar e buscar o discernimento...rever conceitos...separar valores e contra valores...
ResponderExcluirAntônio Carlos Faria Paz - Itapecerica/MG