Fazenda onde nasceu o blogueiro. Foto Luis Fernando Gomes

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sábado, 1 de junho de 2013

S.A.T.G. - Uma crônica.

Foi nos anos 70 que escrevi esta historinha. Publicada no jornal Dia e Noite, de Rio Preto, coloquei-a em meu livro. Gostaram. Espero que os leitores do blog gostem e eu comece  com o pé direito no mês de junho.
SATG
 Mário Cleber da Silva

Não, não se trata de símbolo extraterrestre em algum contato imediato de terceiro grau e nem de códigos secretos do novo livro de Dan Brown. Nada disto. São as iniciais de Santo Antônio Te Guie, e eram as letras que colocávamos nas cartas , ou melhor nos envelopes, perto do remetente, quando escrevíamos do Seminário para nossos pais. Era a época dos “Sem Emails”. Mas não precisavam vir escandalosamente escritas em letras garrafais, muito visíveis, não, que o Santo era dos bons e conseguia ver até debaixo da dobra do envelope aquelas milagrosas iniciais. E tínhamos fortes razões para nos comportarmos daquele jeito.
O correio naquele tempo, como agora, quando foi dividido para servir de cabide de empregos para os partidos aliados da base do governo, não era das coisas mais confiáveis do mundo, e para uma carta chegar a seu destino era preciso de ajuda divina, ou pelo menos de um santo. Forte. E a preocupação que tínhamos se havíamos escrito ou não as fatídicas letrinhas por debaixo da dobra do envelope? E se a carta não chegar por causa do castigo do santo?  Quantos e quantos envelopes eram rasgados para conferir a presença de SATG?  Ou, então, para maior segurança, preenchíamos a parte de trás do envelope de vários SATGs. Mas, infelizmente, para mim, eu deveria ter esquecido de colocar as mágicas letrinhas. De Andrelândia não vinha notícia nenhuma a respeito de minha carta. E havia motivos de preocupações.
Ou seria um castigo divino pelo conteúdo de miha “missiva”? (Começava a carta assim: “Escrevo-lhe esta missiva, para , etc, etc”).  Isto era assunto para um seminarista piedoso falar em cartas, ainda pais com o pai e a mãe? Isto mesmo. Eu estava reclamando que não era fácil agüentar a comida do seminário. Principalmente o jantar. Deitava com fome. A barriga roncava.
“Pare de roncar”, me dizia o seminarista deitado na cama ao lado no imenso dormitório, cheio de adolescentes, pudicamente cobertos com lençol, que era para não “tentar” ninguém. “Não sou eu. Quem está roncando. É a minha barriga. De fome”.
Havia pedido abacate, banana, chocolate em barra, goiabada feita em casa (ah, que delícia), queijo e umas rosquinhas doces que eram de fazer qualquer um babar de prazer. E o pessoal de casa nada de falar sobre os meus pedidos. Faziam  ouvidos de mercador? Ou eu não tinha colocado as benditas SATGs, ou já fora castigado pelo “lá de cima”, que não via com bons olhos aqueles pedidos inusitados. A fome castigava, de modo que resolvi fazer algo perigoso: ia sair à noite para comer um sanduíche. Seria um pouquinho antes do término do recreio das dezoito horas (que ia até às dezenove horas, quando se rezava o terço). Podia até trazer uns pedaços de pão para ir mordiscando durante o estudo da noite, quando a gente cochilava sobre as carteiras. Seria pecado?
Não liguei muito para esta idéia de pecado, e fui em frente, num tardinha, na boca da noite. Desci a Rua dos Passos, meio cabreiro, com medo de encontrar algum padre escondido atrás de uma moita a fim de pegar algum seminarista fujão. E cheguei ao bar. Um homem de maus bofes tinha acabado de chegar, um  pouco antes de mim.
- Um misto – gritou ele para o dono do bar.
- Quente? – retrucou o outro.
- Frio. Quente prá mim é só mulher.
Os fregueses caíram na gargalhada e eu enrubesci de vergonha ao ouvir tão pecaminosas imprecações.  Mas, educadamente, o proprietário do bar se aproximou de mi e perguntou:
- O que você quer, filho?
- Um misto – falei com relutância. E após uma pequena pausa: - quente...
Ainda ouvia a risada debochada do homem de maus bofes que não queria o misto “quente”, quando saí do bar, devorando o sanduíche. Ao aproximar-me da última curva da rua que levava até a entrada do seminário, um braço me pegou.
- O que está fazendo aqui, seminarista?
Na hora da raiva, o reitor não dizia o nome da gente.  Só “seminarista”. Engoli em seco.  Ou melhor, engoli mais secamente o sanduíche, que já me doía na garganta.
- Ah – fiz eu, para dar um  tempo para pensar na resposta.
- O que você foi fazer lá fora?
- Hum, hum, - ruminei – ah, fui dar uma esmola para um pobre homem que estava precisando de dinheiro. Ele ficou tão contente que me deu um pedaço do sanduíche dele. O senhor aceita?
É desnecessário dizer o que ele respondeu. De qualquer forma, aquela noite não dormi de barriga vazia.
            

Um comentário:

  1. Que interessante crônica, que compõe as memórias da vida de seminário do nosso amigo Mário Cleber. Interessante a sigla colocada nas missivas. Meu avô era o carteiro de minha pequena cidade e meu pai também foi carteiro. Muito original a crônica, com um sabor todo especial.
    Antônio Carlos Faria Paz - Itapecerica - MG

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