Fazenda onde nasceu o blogueiro. Foto Luis Fernando Gomes

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sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Atenção, senhores passageiros, ocupem seus lugares!

Há décadas, escrevi esta crônica. Espero que gostem desta conturbada viagem.





Atenção, senhores passageiros, ocupem seus lugares!


Mário Cleber da Silva

            A voz esganiçada no alto-falante acordou alguns que cochilavam nos duros e frios bancos da rodoviária de Camelinha, pequena cidade mineira incrustada no polígono das secas. O relógio batia as oito badaladas, e o sol, ainda que receoso e incapaz de espantar o friozinho, já aparecia brilhante no céu limpo e sem nuvens. O pessoal foi se acomodando nas poltronas apertadas e desconfortáveis, ajeitando as malas e bagagens, e arrumando os sacos de matula. Viajar nesses ônibus sem matula é uma temeridade. Se ficarem na estrada poeirenta, estarão todos mortos de fome. Como tinham tomado o café da manhã recentemente, ninguém mexeu nos “embornais”. Mas quando o motorista parou em Contado, uma hora depois, todo mundo desceu correndo do ônibus para esvaziar a bexiga e os bolsos, e encher o bandulho.
            A vendinha do Zé da Estrada era pequena para a quantidade de fregueses que queria tomar café e comer pão doce. Tadeu, um empertigado rapaz de dezoito anos que ia para São Paulo arrumar emprego, foi o primeiro a conseguir seu pão acompanhado de um coité de pinga. Saiu cuspindo pedaços de pão doce pela boca brilhante para o céu limpo e sem nuvens. Ele gritou para mim:
-        Ô, Quatro Olhos, quer um pedaço, quer?
            Morto de vergonha, fingi que não era eu (não havia o tal de bullying naquela época), puxei a cortina da janela e me encolhi no ônibus. E nem respondi, deixando-o mastigando violentamente o seu naco de comida. Pouco depois, voltaram os passageiros para dentro e a viagem recomeçou. Tadeu não se fez de rogado: entrou no frango com farofa e no biscoito de goma, mordendo com todos os dentes, lambuzando a boca e estalando a língua de satisfação. De vez em quando, grunhia alguma coisa e saía farofa para todo lado.
            Vizinha dele ia a Do Amparo, uma mulherona forte, sacudida, de cabelo duro e ruim, cortado à navalha rente ao pescoço (aquele cabelo, só mesmo à navalha) e que também atacava uns pedaços de frango e uns biscoitos fofos, parecidos com orelhas de velho, e bebericando leite um tanto azedo com o calor. E não eram pedaços esmirrados de frangos, não, tipo pescoço ou asa; eram o peito, as coxas e as sobrecoxas. Os lábios carnudos e grossos brilhavam de gordura. A satisfação era completa.
            Ali perto, o político famoso, Fimenta, dono de terras, gado e gente, ia visitar uns parentes em Belo Horizonte. Levava de tudo para a família: de galinha na gordura até óleo de pequi, coisa gostosa e muito apreciada na região, cujas latas ele cuidadosamente colocara no portabagagens e que com os solavancos começaram a se abrir e soltar uns pingos amarelados, que caíam na camisa branca do terno de Hermenegildo Kangra, outro político, porém mais jovem, que dormia a sono solto e de boca aberta.
            A Do Amparo falava alto para a vizinha:
-        Pois é, dona, nunca fui a Belo Horizonte. Dizem que tem umas casas grandes, artas e muito bonitas, né? Como faiz estas casas?
-        É, nega – respondia a outra no mesmo tom e muito íntima para chamá-la com este apelido carinhoso – ouvi dizer que usam umas varas cumpridas que vão até o céu.
            E o papo continuava, a comilança andava solta, e o sono dos justos não era despertado. Mas com tanta gente comendo, era de esperar que o efeito logo começasse a ser sentido. E não tardou que tal fato se desse. Os “ventos” soltados voluntariamente ou involuntariamente começaram a subir do chão para o alto do ônibus, e o mau cheiro já começava a perturbar até os sonolentos passageiros. Os que estavam acordados usavam as duas mãos para proteger nariz e boca. A catinga perdurava.. De repente, todo mundo ouviu o motorista gritar.
-        Por favor, abram as janelas. Abram as janelas que eu num aguento. Abram! abram!
            O cobrador saiu como louco lá da frente do ônibus, perto do motorista, empunhando um litro de Bom Ar, tamanho família. Como se fosse um crucifixo, começou a exorcizar o demônio do mau cheiro que impregnava o ônibus inteiro. Perto de Tadeu e Do Amparo, ele bufou duas vezes mais: puf, puf. Antes de chegar à traseira do ônibus, o bom ar já tinha acabado. Foi quando o motorista falou, então, pela segunda vez:
-        Tá proibido comer frango com farinha aqui dentro deste coletivo.
            A farra acabou, e a viagem perdeu a graça.



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