Atenção, senhores passageiros, ocupem seus lugares!
A voz esganiçada no alto-falante
acordou alguns que cochilavam nos duros e frios bancos da rodoviária de
Camelinha, pequena cidade mineira incrustada no polígono das secas. O relógio
batia as oito badaladas, e o sol, ainda que receoso e incapaz de espantar o
friozinho, já aparecia brilhante no céu limpo e sem nuvens. O pessoal foi se
acomodando nas poltronas apertadas e desconfortáveis, ajeitando as malas e
bagagens, e arrumando os sacos de matula. Viajar nesses ônibus sem matula é uma
temeridade. Se ficarem na estrada poeirenta, estarão todos mortos de fome. Como
tinham tomado o café da manhã recentemente, ninguém mexeu nos “embornais”. Mas
quando o motorista parou em Contado, uma hora depois, todo mundo desceu
correndo do ônibus para esvaziar a bexiga e os bolsos, e encher o bandulho.
A vendinha do Zé da Estrada era
pequena para a quantidade de fregueses que queria tomar café e comer pão doce.
Tadeu, um empertigado rapaz de dezoito anos que ia para São Paulo arrumar
emprego, foi o primeiro a conseguir seu pão acompanhado de um coité de pinga.
Saiu cuspindo pedaços de pão doce pela boca brilhante para o céu limpo e sem
nuvens. Ele gritou para mim:
-
Ô, Quatro Olhos, quer um pedaço, quer?
Morto de vergonha, fingi que não era
eu (não havia o tal de bullying naquela época), puxei a cortina da janela e me
encolhi no ônibus. E nem respondi, deixando-o mastigando violentamente o seu
naco de comida. Pouco depois, voltaram os passageiros para dentro e a viagem
recomeçou. Tadeu não se fez de rogado: entrou no frango com farofa e no
biscoito de goma, mordendo com todos os dentes, lambuzando a boca e estalando a
língua de satisfação. De vez em quando, grunhia alguma coisa e saía farofa para
todo lado.
Vizinha dele ia a Do Amparo, uma
mulherona forte, sacudida, de cabelo duro e ruim, cortado à navalha rente ao
pescoço (aquele cabelo, só mesmo à navalha) e que também atacava uns pedaços de
frango e uns biscoitos fofos, parecidos com orelhas de velho, e bebericando
leite um tanto azedo com o calor. E não eram pedaços esmirrados de frangos,
não, tipo pescoço ou asa; eram o peito, as coxas e as sobrecoxas. Os lábios
carnudos e grossos brilhavam de gordura. A satisfação era completa.
Ali perto, o político famoso,
Fimenta, dono de terras, gado e gente, ia visitar uns parentes em Belo
Horizonte. Levava de tudo para a família: de galinha na gordura até óleo de
pequi, coisa gostosa e muito apreciada na região, cujas latas ele
cuidadosamente colocara no portabagagens e que com os solavancos começaram a se
abrir e soltar uns pingos amarelados, que caíam na camisa branca do terno de
Hermenegildo Kangra, outro político, porém mais jovem, que dormia a sono solto
e de boca aberta.
A Do Amparo falava alto para a vizinha:
-
Pois é, dona, nunca fui a Belo Horizonte. Dizem
que tem umas casas grandes, artas e muito bonitas, né? Como faiz estas casas?
-
É, nega – respondia a outra no mesmo tom e muito
íntima para chamá-la com este apelido carinhoso – ouvi dizer que usam umas
varas cumpridas que vão até o céu.
E o papo continuava, a comilança
andava solta, e o sono dos justos não era despertado. Mas com tanta gente
comendo, era de esperar que o efeito logo começasse a ser sentido. E não tardou
que tal fato se desse. Os “ventos” soltados voluntariamente ou
involuntariamente começaram a subir do chão para o alto do ônibus, e o mau
cheiro já começava a perturbar até os sonolentos passageiros. Os que estavam
acordados usavam as duas mãos para proteger nariz e boca. A catinga perdurava..
De repente, todo mundo ouviu o motorista gritar.
-
Por favor, abram as janelas. Abram as janelas
que eu num aguento. Abram! abram!
O cobrador saiu como louco lá da
frente do ônibus, perto do motorista, empunhando um litro de Bom Ar, tamanho
família. Como se fosse um crucifixo, começou a exorcizar o demônio do mau
cheiro que impregnava o ônibus inteiro. Perto de Tadeu e Do Amparo, ele bufou
duas vezes mais: puf, puf. Antes de chegar à traseira do ônibus, o bom ar já
tinha acabado. Foi quando o motorista falou, então, pela segunda vez:
-
Tá proibido comer frango com farinha aqui dentro
deste coletivo.
A farra acabou, e a viagem perdeu a
graça.
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