Um excelente e seríssimo depoimento de uma psicóloga analisando a patologia da novela, terminada recentemente. Não vejo Big Brother de jeito nenhum. Novelas, vejo-as, esporadicamente.
Assim sendo, as idéias de minha colega são muito pertinentes.
Quanto à modelo africana, existe um filme muito bom sobre a história dela: Flor do Deserto
Estava com amigos na 5ª feira passada, dia 18 de outubro,
quando subitamente a música ambiente parou de tocar e todas as telas de
projeção do bar passaram a transmitir o penúltimo capítulo da trama
novelesca. Tal fato me deixou perplexa: homens (às vezes pouco afeitos às
novelas), mulheres e crianças pareciam hipnotizados pelo que viam: para meu
espanto e desengano, ante aos nossos olhos passavam-se trapaças e
violências embaladas em caixa e laços de fita de ‘justificadas violências’:
"Ah, o Max mereceu morrer assim, ele era mal, etc... O sequestrador
mereceu morrer, etc... " Era essa uma parte da triste (a meu ver),
murmuração local.
Confesso que isso ainda me choca, continuamos aplaudindo e
dando audiência às pequenas e grandes violências, e com isso participamos
ativamente do processo de banalização
da violência, confirmando um modo de vida nua, tão bem estudado por vários
estudiosos das relações sociais, dentre eles o italiano Giorggio Agamben.
Discordo veementemente dos que afirmam que a vida é isso, é
aquilo que é veiculado nas telinhas e telonas de nossa Rede Globo: a vida é
muito mais que isso, a vida é o que escolhemos fazer dela.
Triste escolha por
‘valores que não edificam’
Engrosso o cordão dos que, em nosso país, se preocupam em
‘bater nas panelas’ para acordar as pessoas, que parecem ‘dormir
eternamente em berço esplêndido...’, como cantamos em nosso Hino Nacional.
Sendo, assumidamente uma ‘dissidente’ Nacional, já que a novela
aqui em questão comoveu o país, desejo mostrar nestas linhas que se seguem,
a tinta ‘invisível’ com que foi escrita a trama que assistimos.
Apesar de tentar acompanhar um capítulo inteiro, nunca
consegui: o máximo permitido por meu estômago, que começava a embrulhar,
foi de duas partes de um capítulo. Mas foi o suficiente, assessorada,
claro, pelo tititi geral
que me explicava o enredo, para pescar alguns dos elementos que compuseram
as estórias ali desenhadas.
Começo pela escala de valores. Vimos ser diariamente
apresentado, com lastimável naturalidade, um verdadeiro rosário do ‘lixo
relacional humano’:mentiras, traições,
trapaças e vitimizações apareciam como arcabouço,
como esqueleto da trama narrada, recheado com as irresponsabilidades que
nos fazem ‘vítimas’ de nossas próprias escolhas.
Todos os envolvidos nas histórias, dos mais hilários aos mais
bestiais, carregavam o ‘conhecido escudo’ das justificativas que,
evidentemente, era sempre o outro: se
alguém errava e isso era o lugar comum, havia sempre um álibi que isentava
os protagonistas de qualquer autocrítica sobre sua ação inadequada.
Logo, foi possível acompanhar uma escalada progressiva de
violências que culminou com uma pessoa sendo ‘linchada’ friamente por
vários ‘vingadores’. Também a personagem vilã da trama tem seu final
coletivamente abençoado, uma vez que ela só fez o que fez porque foi alvo
de um pai abusivo emocional e sexualmente.
Por favor, hipnotizados, convenhamos: os desencaminhamentos de
uma pessoa abusada são muito complexos e foram reduzidos nessa história
apresentada. Afinal, nem todas as pessoas submetidas ao trama, a ele
sucumbem. Menos ainda, obrigatoriamente escolhem passar sua vida em
planejamentos vingativos. Se auxiliadas,e para isso precisam pedir ajuda e
muitos o fazem, poderão até saltar de suas adversidades para caminhos de
crescimento e transformação pessoal e social.
Outra história é
possível
No contraponto da ‘escolha ‘ de vingança, existem várias
histórias de superação pessoal e escolhi uma delas para nos auxiliar aqui.
Trata-se da linda mulher Waris Dirie, a primeira modelo
africana a ter um contrato permanente com a poderosa fabricante de
cosméticos Revlon. Sua história é veiculada nas várias mídias e provam que
pessoas submetidas a longos e profundos sofrimentos podem ‘brotar’ no
deserto de suas vidas.
Em 1997 ela escreveu seu primeiro livro intitulado “Flor do
Deserto” e posteriormente mais outros três. Com eles, pode revisitar suas
angústias e declarou haver descoberto que ao longo da existência, em muitos
momentos o amor e o sofrimento estarão conectados.
Ela nasceu no deserto da Somália e nele viveu em absoluta
situação de carências e privações de todas as ordens. Era agredida
fisicamente pelo pai, como forma de ser educada, de se lhe forjar um
caráter, e aos cinco anos foi levada para fazer a ‘ablação’: extirparam seu
clitóris e os pequenos lábios da vagina. Após costurarem a ferida, o que
restou do orifício vaginal era somente suficiente para passar a urina e a
menstruação.
Teve uma irmã que morreu logo após a ablação e isso a marcou
muito para que um dia pudesse fazer algo pelas mulheres de seu país, para
eliminar essa causa de sofrimento e morte.
Ela fugiu da Somália para não casar com um homem de 65 anos e
na travessia precisou cruzar o deserto. Dos perigos vividos, um confirmou
sua existência: ela despertou um leão (o animal real) e olhou-o bem nos
olhos e lhe disse: “ comam-me. Estou preparada”, e ele se foi. Ela
conseguiu contato e foi ajudada por uma tia que morava em Londres e era
casada com um diplomata.
Vinte anos depois voltou a se reencontrar com sua família e
pode reviver assim, concretamente, sua própria história de fé e pujança.
Seu pai estava cego e lhe disse que ambos eram muito parecidos, muito
fortes, o que muito a comoveu.
Após longos anos como modelo, tornou-se embaixadora das Nações
Unidas, percorreu a África e conseguiu que 15 países penalizassem a
mutilação feminina. Criou a fundação Desert
Dawn (cujo sentido pode ser compreendido em nossa língua como: amanhecer no deserto,
para lutar pela violência da mutilação feminina.
Hoje se dedica também ao filho Aeeke, de 13 anos.
Conclusão: a novela
acabou, mas a vida segue o rumo que lhe damos
Aqui estamos terminando mais esse encontro reflexivo. Desejo
ter acrescentado algo ao nosso mundo pessoal e relacional, ainda mais ao
mundo de nossas escolhas.
Tomara que possamos pautar nossas ações em outra escala de
valores, mais edificante: na qual a primeira e grande premissa seja o amar, naquele sentido mais
biológico (defendido pelo biólogo chileno Humberto Maturana) do termo: a
capacidade de deixarmos e de
estarmos tranquilos diante do outro. OK?!E
para não fugir de nossa tradicional proposta de usar os poetas para
encerrar nossas conversas, escolhi para esse desfecho o nosso amado poeta
português Fernando Pessoa:“Valeu
a pena? Tudo vale a pena se a alma não é pequena. Quem quer passar além do
Bojador tem que passar além da dor. Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
mas nele é que espelhou o céu”. (Fernando Pessoa, Obra Poética, RJ: Editora Nova
Aguilar, 17ª reimpressão da terceira edição, 2001).
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