MATA O BICHO, MATA...
Mário Cleber da Silva.
Não se sabia desde quando era
sacristão na cidadezinha calma - exteriormente. Interiormente, era um rebuliço
só. A política entre dois partidos inimigos há décadas criou as duas siglas: os
gambás e as cobras, e a alternância no poder revelava que ora a cobra comia o
gambá, ora o gambá devorava a cobra. E, entre as eleições, o convívio entre
eles não era dos mais amistosos. Mas,
criança como era, não percebia essas briguinhas e não podia dizer se o
sacristão era gambá ou cobra. O padre – sabia-o bem – era gambá. Um gambá
forte, sacudido, sério e muito religioso. E culto, diga-se a seu favor. O
sacristão, ao contrário, era rude, esquelético, ou seco, talvez por pouco
comer. Gostava mesmo era de beber. É possível que ele fosse cobra. Mesmo porque
era bravo, muito bravo. Ninguém fazia hora com ele. Principalmente, as
crianças, que fugiam dele como o diabo foge da cruz. De modo que, ao querer ser
coroinha, minha mãe, preocupada com o futuro do filho, me advertiu: mas logo
com o sacristão Seu Paulo? Ele vai infernizar sua vida. Mas o que eu podia fazer, se me agradavam
aquela batininha vermelha, aquela sobrepeliz branca e aquele tilintar da
campainha na hora da consagração? Esperar ele morrer de tanto beber ou “matar o
bicho”, como se dizia antigamente para depois ser coroinha? Nem pensar, eu
ficaria adulto antes, pois a saúde do sacristão era muito boa. De modo que,
discretamente, comecei a ajudar as missas. Não sei se por manter uma certa
distância do sacristão ou por ele me ver como o menor dos coroinhas ou por usar
grossos óculos de fundo de garrafa, o Seu Paulo caiu de amores para comigo.
Amores e atenção. Sempre estava perto nas missas em que eu ajudava. Talvez com
medo de que eu não tivesse força suficiente para transportar o pesadíssimo
missal de um lado para o outro. Ou tropeçar nos degraus do altar. Convém
lembrar aos menos incautos que tudo isso ocorria nos anos 50, época de latim
nas missas e da posição do padre, de costas para os fiéis. E estávamos todos
felizes: o padre, por ter mais um coroinha, eu, por conseguir realizar meu
sonho, e o sacristão por ter despertado em si aquele lado paternal, tão
relegado. Não tinha família. Por isso se dedicava tanto à igreja. Ou também aos
copos de pinga. E tudo ia muito bem até
que um dia... Bem, apesar de ser um gambá, portanto animal, e de ser muito
forte, o padre era medroso. Tinha medo de bicho, inseto ou qualquer coisa que o
valha. Sim, um dia, ao se preparar para fazer a consagração, a padre percebeu
um bichinho no altar. Mesmo com medo, levantou a hóstia. Ao abaixá-la, notou
horrorizado que o bicho avançara para bem perto do cálice. Tremeu. Olhou para
trás me encarando. “Psiu”, me chamou. Eu me levantei e fui para perto do altar.
Vi o bicho lá. Uma coisa feia. “Tira daí”, ele murmurou. Eu, hein bébé? Se ele
é forte e grande e não dá fim no bicho, não serei eu, fraquinho, que vou
fazê-lo. O Padre percebeu. Olhou pro lado e viu o sacristão. ‘PSIU’, esse saiu mais alto, e olhando o cálice, disse: Mata o bicho,
mata...” O sacristão ficou parado momentaneamente sem saber o que acontecia. E
o padre, “mata o bicho, mata”. Bem, Seu Paulo não se fez de rogado. Levantou-se
, foi até o altar, pegou o cálice e bebeu todo o vinho do padre.
Nenhum comentário:
Postar um comentário