Fazenda onde nasceu o blogueiro. Foto Luis Fernando Gomes

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quinta-feira, 1 de maio de 2014

Um texto polêmico sobre o trabalho no Dia do Trabalho

Foi com empenho e alegria que fiz a tradução do inglês (saiu no jornal The Guardian). Mas adorei.  É um verdadeiro petardo para a ideia romântica e adorável do fazer o que amamos e amar o que fazemos. Meus leitores merecem textos fortes, pesados e de conteúdo. Acho que este tem.


Faça o que você ama. Ame o que você faz.
Bonitas palavras, não? Mas será que são verdadeiras e ou corretas? Não, segunda a colunista Miya Tokumitsu do jornal inglês The Guardian.

Segundo ela o FOQVA (Faça o que você ama) se tornou um mantra para nosso tempo. O problema é que ele não nos leva à salvação, mas à desvalorização do emprego – e, pior, à desumanização da grande maioria dos trabalhadores.
Superficialmente o FOQVA é um conselho que nos joga para cima, nos levando a  pensar no que mais gostamos de fazer e ser parte de uma grande empresa.  Mas por que teríamos prazer (trabalhando) e ainda iríamos ganhar por isto?  E para quem se falam estas palavras mágicas?
FOQVA é uma senha secreta das classes privilegiadas que revela seu elitismo transformando a prosperidade em algo nobre. De acordo com esta maneira de pensar, não se trabalha visando uma compensação, mas como ato de amor. Se não acontece algum ganho financeiro é provavelmente porque o trabalhador não mostrou nem paixão pelo que faz e nem eficiência. O objetivo principal deste mantra é fazer o empregado crer que seu trabalho servirá ao seu ego e não ao mercado.
Aforismos normalmente têm muitas origens e reencarnações, mas a natureza do FOQVA é imprecisa. Confúcio, Rabelais, Martina Navratilova foram alguns que já usaram estas palavras. CEOs adoram repetir a frase.
Mas o mais novo propagandista desta frase foi Steve Jobs. Ao dar uma palestra na Standford University em 2005, o CEO da Apple, falando da criação da empresa, inseriu estas palavras:
“Vocês têm que encontrar o que vocês amam. Isto é verdade tanto para o seu trabalho quanto para seus relacionamentos O trabalho vai preencher uma boa parte de suas vidas e a única maneira de se sentirem satisfeitos é fazerem aquilo que vocês acreditam ser um grande trabalho. E única forma de fazer um grande trabalho é amar o que vocês fazem.
Nestas quatro frases, as palavras “vocês” e “seu” aparecem várias vezes. Este foco no indivíduo não surpreende vindo de Steve Jobs, que cultivou uma auto imagem de trabalhador inspirado, casual e apaixonado – todas características que agradam o amor romântico ideal. Jobs mistura tão bem este impressionante ego-trabalhador com sua empresa que seu jeans e camisa de gola rolê  se tornaram um padrão a ser copiado por todos funcionários da Apple, e a empresa o mantém: Faça o que você ame. Vista aquilo que você ama.
Ao retratar a Apple como o trabalho de seu amor individual, Jobs exclui o trabalho de milhares de pessoas nas fábricas da Apple, escondidas no outro lado do planeta – o verdadeiro trabalho que possibilita a Jobs demonstrar o seu amor.
Esta exclusão tem que ser exposta. Enquanto o FOQVA (Faça o que você ama) parece inofensivo e até precioso, ele é auto focado a ponto de ser narcisismo. As frases de Jobs é antítese depressiva da visão do trabalho para todos de Henry David Thoreau. Em “Life Without Principle” ele escreveu: “ seria uma boa economia para a cidade, se ela pagasse a todos os trabalhadores tão bem que eles não se sentiriam que trabalhavam por objetivos menos nobres, meramente pela sobrevivência, mas por objetivos científicos e até morais. Não contrate alguém que faça o seu trabalho por dinheiro, mas aquele que o faz por gostar”.
Vamos admitir, Thoreau não  tinha lá grandes simpatias pelo proletariado (é difícil de imaginar alguém lavando tecidos para pintura por razões “científicas ou mesmo morais”, ainda que com bom salário). Não obstante, ele  quer uma sociedade que faça um trabalho bem recompensado e significativo. Em contraste, a visão “jobsiana” do século XXI nos pede para voltarmos para dentro de nós mesmos. Absolve-nos de qualquer obrigação e reconhecimento do mundo exterior.
Uma conseqüência deste isolamento é a divisão que FOQVA (Faça o que você ama) cria entre trabalhadores, em quase todas as classes. O trabalho se divide em duas classes opostas: aquele amável (criativo, intelectual, socialmente prestigiado) e a que não é (repetitivo, não intelectual e indistinto). Aqueles que estão no campo dos amáveis são na  grande maioria os mais privilegiados em termos de riqueza, status social, educação, características raciais dominantes e poder  político, abrangendo uma pequena minoria da força trabalhadora.
Ignorando a maior parte do trabalho e reclassificando o resto como amor. FOQVA (Faça o que você ama) pode ser a mais elegante forma anti-trabalhador existente.
Para os forçados em trabalhos não amáveis, a história é outra. Sob o credo de FOQVA (Faça o que você ama), o trabalho que é realizado por outros motivos ou necessidades que não seja pelo amor – na verdade  a maior parte dos trabalhos -  é totalmente apagado. No discurso de Jobs, o trabalho não amável mas socialmente necessário é banido de nossa consciência.
Imaginem a grande variedade de trabalhos que possibilitam a Jobs ser o CEO por um único dia. A comida que veio das plantações, transportada por longas distâncias.  Os produtos de sua empresa são embalados, embarcados, propagandeados, filmados. Processados também juridicamente. As lixeiras que são limpas, os cartuchos de tintas que são enchidos. A criação de Jobs vai por ambos os caminhos. Ora, com a vasta maioria dos trabalhadores efetivamente invisível para as elites, ocupadas em seus afazeres amáveis,  como não é surpresa que a luta mais pesada que os trabalhadores enfrentam hoje em dia – diferenças abismais de salários, custos altíssimos para cuidar dos filhos – nem toca de leve nas notícias políticas, mesmo entre as facções liberais?
FOQVA (Faça o que você ama) disfarça o fato de que escolher uma carreira por motivação pessoal é um  privilégio, sinal de uma classe socioeconômica. Mesmo um  design gráfico cujos pais podem pagar seu curso superior e o apartamento para morar, não pode levar em conta o FOQVA (Faça o que você ama) se quiser ter sucesso na carreira.
Se acreditarmos que ser empreendedor no Vale do Silício ou cura de museu ou cientista pesquisador é essencial para sermos verdadeiros conosco mesmos, o que achamos da vida pessoal e desejos dos que arrumam os quartos de hotéis ou que enchem as prateleiras de supermercados? A resposta é : nada.
Trabalhos árduos e mal remunerados é o que os estadunidenses estão fazendo e vão continuar fazendo. De acordo com as estatísticas do Ministério do Trabalho, as duas ocupações de maior crescimento projetado até 2020 serão o “cuidador pessoal e empregado doméstico”, com salários variando de 19.640 dólares a 20.560 dólares por ano em 2010. Elevando certos tipos de profissões para a categoria de dignos e amáveis vai necessariamente manchar o trabalho daqueles que, sem glamour, fazem  o trabalho que mantém a sociedade funcionando, especialmente o trabalho crucial de “cuidador”.
Se FOQVA (Faça o que você ama) mancha ou torna invisível a grande massa de trabalhadores, que nos permitem viver com conforto e fazer o que amamos, ele também causa um grande dano às profissões que pretende celebrar Mas não há lugar em que FOQVA (Faça o que você ama) seja mais devastador do que nas Universidades A média dos estudantes de PH.D, na metade dos anos 2000, renunciou a um dinheiro fácil, em finanças ou no Direito (agora um  pouco mais difícil) para viver com um magro salário para seguir sua paixão em Mitologia Nórdica e ou História da Música Afro-Cubana.
A recompensa para essas vocações  é um cargo acadêmico, - cerca de 41% das Universidades Estadunidenses têm professores adjuntos e contratam instrutores que recebem menos, não tem assistência, nem benefício, nem salas, nem seguro e nem contratos de longa duração.
Há vários motivos que mantêm estes trabalhadores altamente qualificados com Ph.D com salários baixos, entre eles a queda nos custos de um Ph.D. mas o mais forte é como a doutrina do FOQVA (Faça o que você ama) ficou incorporada no meio acadêmico. Poucas profissões fundem a identidade profissional de seus trabalhadores com o resultado de seu trabalho. Porque a pesquisa acadêmica deve ser feita por puro amor é que as condições presentes e a compensação por este trabalho se tornaram um apêndice, se tanto.
Sarah Brouillett, falando do trabalho acadêmico, afirma: “A fé de que nosso trabalho oferece recompensas não materiais e é mais de acordo com nossa identidade do que um trabalho “regular” nos transforma em empregados ideais, quando o objetivo da administração é tirar o máximo de nós com o mínimo de custos”
Muitos acadêmicos gostam de pensar que evitaram  um ambiente de trabalho corporativo e seus valores padronizados, mas Marc Bousquet, em seu ensaio “Nós Trabalhamos”,   diz que a Universidade pode realmente fornecer um modelo de administração corporativa..
Como incrementar o local de trabalho acadêmico e encontrar pessoas com alto nível intelectual e intensidade emocional por cinqüenta ou sessenta horas semanais pagando um salário de atendente de bar ou menos? Existe alguma maneira de termos nossos empregados desmaiando em cima de suas mesas e murmurando “Amo o que faço” diante da sobrecarga de tarefas e um contracheque menor? Como conseguir que nossos trabalhadores façam parte do corpo docente e negar que eles realmente dão duro? Como ajustar nossa cultura corporativa ao campus de tal forma que a nossa força de trabalho caia de amores com o seu trabalho também?
Ninguém está afirmando  que o trabalho agradável deva ser menos agradável. Mas trabalho satisfatório ainda é trabalho e encará-lo  como tal não o solapa de jeito nenhum. Por outro lado,recusando vê-lo  assim, abre a  porta para a exploração e ofende todos os trabalhadores.
Ironicamente, FOQVA (Faça o que você ama) reforça a exploração mesmo dentro daquelas assim  chamadas amáveis profissões, onde o trabalho fora do expediente, mal pago  ou não pago é a nova norma: repórteres de prontidão e que tem dar uma de fotógrafos, publicitários que têm que trabalhar nos finais de semana: 46% dos trabalhadores têm  que checar seus emails mesmo quando doentes. Não existe nada que torna a exploração mais fácil do que convencer os empregados que eles devem fazer o que eles amam.

Em vez de criar uma nação de trabalhadores felizes e autorrealizados, a nossa era do FOQVA (Faça o que você ama) vê surgir o professor adjunto, o estagiário não pago; pessoas que são persuadidas a trabalhar por menos ou até de graça, ou até por uma perda líquida de riqueza. É o caso de estagiários trabalhando por notas, ou mesmo de pessoas querendo trabalhar nas famosas indústrias da moda – de graça – para ter experiência e para o curriculum  (Valentino e Balenciaga, são duas entre muitas).
Não é surpresa que estes estagiários são abundantes em campos altamente desejáveis socialmente, incluindo moda, mídia e arte. Estas indústrias já estão acostumadas a pagar com moeda “social”, em vez de salários reais, tudo em nome do amor. Excluída destas oportunidades, claro, está a esmagadora maioria da população: aqueles que precisam trabalhar por dinheiro. Esta exclusão não só calcifica a imoralidade econômica e profissional, mas também isola estes indústrias da total diversidade de vozes que a sociedade tem a oferecer.
Não é coincidência que  indústrias que confiam pesadamente nos estagiários – moda, mídia e arte – são justamente as femininas. Ora outra conseqüência danosa do FOQVA (Faça o que você ama) é como este mantra usa o  trabalho feminino por pouca coisa ou até sem compensação nenhuma. As mulheres são a maioria da força trabalhadora não paga ou de baixos salários: empregadas domésticas, professoras adjuntas e estagiárias de graça. Superam os homens. O que une todos estes trabalhadores  é a crença de que os salários não deveriam ser a principal motivação pelo que fazem. Supõe-se que as mulheres devem fazer o  trabalho porque elas são as nutridoras naturais e estão ávidas para agradar; afinal elas têm tomado conta de crianças, dos idosos e dos serviços da casa – sem ganhar nada – desde  tempos imemoriais. E falar de dinheiro não é apropriado, “elegante”.
Faça o que você ama e você não trabalhará um dia sequer em sua vida! Antes de sucumbir ao calor intoxicante desta  promessa, é critico perguntar: “Quem  é realmente que está levando vantagem em transformar trabalho em não trabalho?” “Por que os trabalhadores deveriam  sentir que não estão trabalhando quando na verdade eles estão?”  Mascarando os verdadeiros mecanismos de exploração do trabalho que ele está alimentando, FOQVA (Faça o que você ama) é, de fato, a mais perfeita ferramenta ideológica do capitalismo. Se encararmos todo o nosso trabalho como trabalho, forneceremos limites apropriados para ele, exigindo compensação justa e horários humanos que deixem tempo para família e lazer.

E, se fizermos assim, muitos de nós faremos o que realmente amamos



This piece is adapted from an essay that originally appeared in Jacobin magazine.


Um comentário:

  1. Matéria espetacular, grandes verdades acerca do trabalho! FOQVA é uma verdadeira enganação! Parabéns Mário Cleber pela postagem!

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